Coisa pra Inglês Ver
Costumamos ver nos filmes americanos, feitos ou não para TV, policiais negros ocupando funções principais ou de chefia em órgãos de segurança, encarregados da apuração de crimes em geral, distúrbios, manifestações de rua, etc. Numa preocupação declarada de se dar ao homem negro a importância social que volta e meia verificamos que ele não tem.
A própria eleição do presidente americano não foge à essa constatação. Nos primeiros momentos identificado com os pleitos dos imigrantes e da comunidade negra, mais tarde o que se viu foi o exercício da presidência por um homem de cor negra com a mesma postura conservadora que se pudesse esperar de um homem branco. As recentes ações do governo americano, aparentemente favoráveis aos imigrantes, são, na verdade, decorrentes da questionável popularidade do presidente Obama que ora se observa. Lá também, como em todo o mundo democrático, tudo é válido na corrida atrás de votos. O que deve suscitar, nesse caso, a imediata reação dos setores conservacionistas, sempre ao lado de um segregacionismo que ninguém desconhece.
Só isso explica a lamentável decisão de um júri que protege “um policial branco de ser processado pela morte de um adolescente negro” que, quando interpelado pela autoridade, achava-se desarmado e de mãos para o alto.
Não foi apenas o caso de Michael Brown, de 23 anos, que em Ferguson, Missouri, próximo a Saint Louis, levou seis tiros, embora estivesse desarmado e de mãos para o alto, sob a suspeição de ter roubado “um maço de cigarros de uma loja”. Houve pelo menos mais três casos.
Também em Ferguson, onde a maioria dos policiais são brancos e da comunidade é negra, Kajieme Powel, com a mesma idade e cor de Michael Brown, foi morto pela polícia local porque “com uma faca ameaçava as pessoas”. Não obstante a declaração de testemunhas de que o jovem não oferecesse perigo por ser portador de deficiências mentais.
Em Dayton, Ohio, o negro John Crawford, 22, foi morto por um policial porque portava uma arma de brinquedo que “era vendida no mercado onde o jovem foi baleado”.
Em 21 de novembro, o menino negro Tamir Rice, 12, foi morto pela polícia com dois tiros face à denúncia de que “uma pessoa apontava uma arma para pedestres”, embora o denunciante ressaltasse que a arma pudesse ser de brinquedo. O interessante nesse caso é que o funcionário que recebeu a denúncia teria “perguntado por duas vezes se o jovem era negro ou branco”.
A atitude do presidente Obama não vai muito além da retórica. No caso de Michael Brown restringe-se a solicitar à população que as manifestações ocorram de forma pacífica. Valendo-se das exortações da própria família do jovem assassinado. Não difere muito do Papa que, diante das guerras intermináveis no Oriente Médio, diante do massacre do povo palestino, das decapitações propagandísticas de organizações mulçumanas, da fome na África e de todo tipo de convulsão mundial, chega à janela para a cândida solicitação de justiça e paz aos governantes ou aos diferentes donos do poder. Ou então para nos garantir a apuração dos crimes de pedofilia cometidos pelos padres da Igreja. É de se esperar que esse dois Papas, um negro e outro de descendência sul-americana, pudessem fazer algo mais que se limitarem a contemporizações que se perdem no vazio.
Aqui no Brasil a Justiça, na interpretação dos excluídos e das minorias periféricas, deve ser entendida como “coisa pra inglês ver”. O que não se diferencia muito da questão da ascensão social para o negro norte-americano, consideradas essas últimas e infelizes ocorrências.
Em 1919, viajando pelo sul dos EUA, Gilberto Freyre, o reverenciado autor de Casa Grande e Senzala, “se horroriza ao sentir um cheiro intenso de carne queimada e ser informado com relativa simplicidade: – É um negro que os ‘boys’ acabam de queimar”.
Hoje, 95 anos depois, os negros continuam a ser queimados nos EUA. Só que agora a tiros.
Rio, 25/11/2014