VIOLÊNCIA E HIPOCRISIA SOCIAL
Notícias diárias falam de violências. Muitas absurdas, desumanas e sem causas transparentes. Como muitas destas violências são, aparentemente, não-racionais, as investigações procuram identificar as possíveis causas de tantos crimes, absurdos e hediondos.
Fazem-se “n” conjeturas sobre os motivos de tantos homicídios e agressões. Mas, nesta busca por explicações para tanta agressividade criminosa, muitas vezes se constroem explicações que ignoram as causas mais profundas, e se destaca causas secundárias e parciais. Isto pode ocorrer por ignorância, por hipocrisia ou por má vontade. Os dirigentes sociais não se aventuram a enfrentar as verdadeiras causas, pois isto significaria renunciar ao comodismo, e poderia ser oneroso para os privilegiados do status quo. Vejamos alguns fatos.
Em 20 de abril de 1999 ocorreu a tragédia na Escola Columbine em Littleton, Estados Unidos. Os estudantes Eric Harris e Dylan Klebold, com 18 e 17 anos respectivamente, mataram 12 colegas e 1 professor, ferindo mais 23 outros. Depois disto, os atiradores se suicidaram. Com duas armas, um rifle de caça, uma pistola semiautomática e um par de bombas eles procuraram produzir o maior prejuízo possível.
Este incidente e tantos análogos, que acontecem em educandários dos Estados Unidos (e começam a se multiplicar no Brasil!), provocaram um pânico moral na população, nas escolas, nos meios de comunicação, na indústria de brinquedos, nos provedores e usuários da internet, no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas dos Estados Unidos.
As reações públicas demonizaram a cultura pop como a causa da transformação de inocentes jovens em criminosos. A TV americana promoveu debates em que videogames e filmes foram acusados de incentivarem a violência na juventude. Outros alegaram que Harris e Klebold foram influenciados por grupos marginais das periferias negras, pertencentes a gangues mafiosas, que ensinavam a fabricar bombas pela internet, reunindo-se para ver filmes pornográficos, e jogar videogames depravados.
Reportagens fantasiosas identificaram Harris e Klebhold como admiradores do mais demonizado rock de Marilyn Manson. Candidatos a cargos políticos iniciaram uma campanha anti-rock. Outros alegaram que os assassinos não haviam sido influenciados por Manson, mas pelos neonazistas alemães e suas músicas, pois p massacre ocorrera justamente na data do aniversário de Hitler.
Além de se demonizar músicas, buscaram-se causas da violência na internet, na televisão, em filmes, em vídeos, em videogames, em livros, em modos de se vestir. Dali nasceu um nunca visto movimento de censura nos Estados Unidos. Tanto políticos da direita como da esquerda propuseram projetos de leis favoráveis à uma ampla censura. Também foi proposto um Encontro de Cúpula para discutir a violência na juventude e nos meios de comunicação.
Alegou-se ainda que Harris e Klebold eram homossexuais, e que, por isto, era necessário rever os valores familiais, proibindo manifestações gays. Os códigos de linguagem e civilidade nas escolas deveriam ser revistos. Roupas exóticas, cortes de cabelo estilizados, piercings e joias, com simbologias estranhas, deveriam ser proibidos nas escolas. Os estudantes deveriam ser uniformizados. Assim começou uma repressão a tudo que era diferente nas escolas.
Também a compra e o porte de armas entrou em debate acalorado. Alguns Estados legislaram, dificultando a aquisição de armas por jovens, por incapazes e por propensos ao crime. Mas os Estados Unidos, como um todo, preferiram permanecer armados até aos dentes.
A violência nas escolas, nos Estados Unidos, motivou ampla proposta de censura para a linguagem midiática, para os jogos eletrônicos, para filmes e livros. Diante disto, diversos especialistas declararam que a questão da violência não era redutível a umas poucas causas. Pois, neste debate sobre a violência, esqueciam-se aspectos fundamentais, como, por exemplo, o sistema de vida nos Estados Unidos. Para compreender a tragédia de Columbine pouca atenção se dera à vida dos jovens criminosos. Em que ambiente cultural viveram? Como qualificar o sistema educacional dos Estados Unidos? Por que não se discutira a falta de preocupação dos Estados Unidos com o problema das classes sociais, e a violência estatal legalizada?
Por ocasião da tragédia em Columbine, o Presidente Clinton aconselhou as famílias a ensinarem aos filhos que “os desentendimentos devem ser resolvidos com a palavra e não com armas”. Dizia Clinton aos produtores de filmes de Hollywood que “era uma vergonha produzir tantos filmes com tantas cenas de violência”. Mas, entretanto, nos meses de março e abril de 1999 a NATO e os Estados Unidos começaram a bombardear a Yugoslávia, inclusive matando 87 inocentes refugiados em Kosovo.
Pregar “paz” em casa e matar, sem escrúpulo, fora de casa isto não é tremenda hipocrisia? Se os chefes são violentos, como inibir a violência dos subalternos?
E a violência que aumenta nas escolas e na sociedade brasileira em geral? Quais suas causas mais profundas?
Convivemos com injustiças sociais terríveis. Temos juízes sem sensibilidade social, processando cidadãos porque os advertem de não serem “deuses”; temos policiais mal treinados e violentos; temos políticos corruptos, ladrões e mentirosos; temos banqueiros estelionatários; temos empresários, patrões de milhares de trabalhadores, sem nenhuma preocupação moral; temos religiosos, ludibriando o povo ignorante e ingênuo; temos um sistema educacional deficiente; um atendimento à saúde abaixo da crítica; temos inúmeras famílias desestruturadas; temos milhões vivendo em casebres subumanos; temos antros prisionais escabrosos; etc.etc.
A alta criminalidade e violência no Brasil não se reduz a um “vírus genético do mal”, ou a uma perversidade psicológica dos criminosos. Mas, muito mais, a causas que, em geral, não se quer discutir e enfrentar. Em tudo isto, a hipocrisia nacional não para de aumentar.
Inácio Strieder é professor de Filosofia – Recife/PE