CONDIÇÕES PRÉ-ÉTICAS

A ética não é um conceito com conteúdo claro e distinto. Pode-se falar em ética civilizada e ética bandida. Sim, também os bandidos têm ética. Pela história etimológica do conceito “ética”, constata-se que o “etos” é o modo de os animais se comportarem. E ainda: o ambiente em que os animais vivem, e como se comportam neste ambiente. Desta compreensão do “etos” animal surgiu a palavra “ética” no contexto humano. Por isto, para descrever a ética de um povo, de uma época, é necessário estudar o comportamento humano num determinado ambiente e contexto. O que supõe conhecer as exigências psicológicas, sociais e culturais do ser humano.

A partir de uma determinada compreensão de quem é o ser humano, cria-se, então, um conjunto de princípios, de valores, que se considera adequados ou benéficos ao homem, e outro conjunto de compreensões e atitudes que são vistas como desfavoráveis. Dali nascem os conceitos de bem e de mal em relação ao que os homens pensam e fazem.

Ética, portanto, tem a ver com as culturas políticas, religiosas e pragmáticas de grupos humanos. O que é considerado bom e o que é considerado mau para esta ou aquela etnia? para este ou aquele país? dentro desta ou aquela religião? neste ou em outro momento histórico?

Em estágios de barbárie são considerados “éticos” crimes civilizatoriamente considerados hediondos: homicídios, penas de morte, guerras, mutilações, sequestros, estupros, ladroagens, mentiras, falsificações, difamações, corrupções, escravidão...

Em sequência aos estágios bárbaros, partes da humanidade, em épocas históricas diversas, despertaram para um processo civilizatório, com uma nova definição de quem é o ser humano, de suas necessidades psicológicas, sociais e culturais. De acordo com as compreensões da vida humana nos estágios civilizatórios, se estabeleceu o que convém e o que não convém ao homem para que tenha uma vida digna. Em outras palavras, o que significa ser civilizado? Em resposta nasceram os princípios e os valores éticos.

Mas a definição do que é positivamente ético, e do que é resquício de barbárie, nem sempre é claro e distinto. Estabelecer isto é um processo permanente. Contudo, em relação a certas questões, já há um consenso humanitário globalizado que há princípios, ações e comportamentos toleráveis, e outros intoleráveis, em sociedades que se consideram civilizadas.

O processo civilizatório ocidental já se iniciou na Antiga Grécia, onde se destacam os filósofos do período clássico. Platão, quatro séculos antes de Cristo, já advertiu de que, para uma pessoa se conservar no bem, exigem-se certas pré-condições. Sem estas pré-condições a ética não seria possível. E ele destacou algumas: a pessoa deve ser considerada alguém – deve ter um nome; a pessoa deve possuir um endereço – deve ser possível localizá-la; a pessoa deve ter uma relação comunitária – deve ser conhecida em sua comunidade; a pessoa deve ter alguma profissão – não pode permanecer ociosa; a pessoa deve ter algo que ela estime – família, objetos, trabalho, propriedade...

Socialmente, Platão indica que as características de uma sociedade civilizada são especialmente a justiça, o exercício do poder, nas mãos dos mais honestos e dos mais sábios, acima dos quais estão, como valor supremo, as Leis. Séculos depois, os romanos proclamavam (mas nem sempre assim procediam!): “não somos bárbaros, possuímos leis”.

Saltando, agora, para a realidade brasileira: somos bárbaros, ou civilizados? Sob certos aspectos formais, não há dúvida, somos civilizados: temos leis! Mas, em que nível estas leis são adequadas e observados? Aí está nossa barbárie. Os que fazem as leis, são os que menos as observam. Os tribunais estão abarrotados com processos contra os governos. Grande parte dos juízes julgam sem o mínimo sentimento humanitário. Julgam fragmentariamente e, muitíssimas vezes, sem considerar os diversos aspectos da Constituição. Por isto as cenas lamentáveis de reintegrações de posse com aparato selvagem da polícia.

Nada contra as reintegrações, mas a constituição também proíbe os constrangimentos de crianças, doentes, idosos, mulheres grávidas. Por isto, os juízes, se fossem civilizados, antes de decretarem as reintegrações, deveriam exigir das autoridades executivas que garantissem nova moradia aos cidadãos despejados, que não houvesse constrangimentos inconstitucionais. Pelo modo como muitas reintegrações são decretadas no Brasil, constata-se que, certos juízes em nosso país, não passam de títeres bárbaros.

Poderíamos elencar inúmeras situações de barbárie em nosso país: corrupção, homicídios, presídios superlotados, roubos, furtos, situações análogas à escravidão, sequestros, gangues, falta de atendimento à saúde, falta de escolas, falsários, cobranças indevidas, etc, etc. Situações que nos envolvem, muitas vezes, humilhantes e revoltantes...

Considero que somos um Brasil formalmente civilizado, mas na prática, sob muitos aspectos, ainda bárbaro. E que barbárie! Quando nem se pode sair de casa tranquilamente, sabendo que se há de voltar íntegro!

Inácio Strieder é professor de filosofia - Recife -PE.