ENSAIO SOBRE A INVISIBILIDADE
Informativo UBT Seção SP Nº 433
JB Xavier
Informativo UBT Seção SP Nº 433
JB Xavier
Saramago escreveu o seu Ensaio Sobre a Cegueira, onde, repentinamente, todos ficam cegos. Foi a maneira que ele encontrou - genial, diga-se de passagem - para criticar a sociedade que fecha os olhos para quase toda a podridão que a rodeia.
E eu, há algum tempo, comecei a lhe dar razão, porque percebo que quase ninguém mais me enxerga, à medida que vou envelhecendo...
Só recentemente descobri que , ao contrário do que Saramago disse, ninguém está ficando cego, eu é que estou ficando invisível à medida que avanço na idade.
Comecei a perceber isso quando meus filhos foram crescendo e passaram a quase não me perceber, ao entrar e sair da sala, como se eu não existisse, embora eu estivesse sentado na poltrona ao lado deles. O mesmo acontece no meu trabalho. As pessoas me enxergam cada vez menos. E essa invisibilidade atinge também a audição, porque tanto quanto não me enxergam, os outros também me ouvem cada vez menos.
No início entrei em pânico, porque percebi que estava aos poucos me tornando transparente contra o fundo, e que havia ambientes em que já nem notavam minha presença.
Então, um dia encontrei um homem que estava em nosso grupo de amigos, e que permanecia calado, ouvindo atentamente a conversa do grupo, que discutia literatura. Ninguém o notava. Na verdade ele parecia se esforçar para não ser notado, ao contrário do grupo, onde cada um se esforçava exatamente pelo contrário.
«Ele também está invisível!» pensei. «Tal como eu!» Mas, se é assim, pensei, porque eu o estou enxergando?
Só muito tempo depois é que eu soube que aquele homem era um filólogo e dicionarista aposentado que falava 6 idiomas!
Então, neste dia, parei de ter medo, porque percebi que os invisíveis são pessoas que ouvem mais do que falam, que não procuram fama, que não anunciam aos quatro ventos seus títulos, e, principalmente, que gostam mais de aprender do que de ensinar.
Naquele dia compreendi que ser invisível é também divertido, porque nada é mais hilário do que ver um idiota bancando o inteligente, diante de um inteligente se disfarçando de idiota.
Vi como ele sorria silenciosamente diante de algumas idiotices e gabolices proferidas pelo grupo, de como baixava o olhar quando via um ou outro tentando ser o mais importante na discussão, e percebi quando se afastou do grupo, tão invisivelmente quanto havia chegado, certamente por perceber que os argumentos estava muitos furos abaixo de seu intelecto.
Mas não são somente intelectuais que ficam invisíveis. Meu pai, por exemplo, não era um intelectual. Era apenas um homem extremamente calejado e repositório de uma vasta experiência de vida. Mas para mim ele era invisível, porque ao invés de discutir comigo as questões que eu propunha - sempre de nível, a meu ver, muito elevado e transcedental - ele me propunha questões bem simples, quase sempre princípios fundamentais, que me embaraçavam, quer pela desimportância que eu atribuía a elas, quer pelo momento impróprio em que elas eram feitas.
Como eu poderia supor que ele estava me dizendo nas entrelinhas que eu não me metesse a discutir coisas tão elevadas sem dominar antes as coisas obvias e triviais? E o que eu chamava de inadequação do momento, nada mais era do que sua tentativa de quebrar minha retilínea linha de raciocínio adquirida na sapiência condicionada da universidade.
E assim, ele foi se tornando invisível para mim, até que percebi o quanto perdi por não tê-lo enxergado melhor. Mas aí já era tarde demais!
Aos poucos fui perdendo o medo da invisibilidade porque percebi que não estava só e que os invisíveis se enxergam uns aos outros! A partir desta percepção, descobri também que os invisíveis são solitários deambulando num mundo de mediocridades.
Comecei a prestar atenção nos invisíveis, e a perceber algumas características que eles tem em comum. Percebi que todos eles, sem exceção, detestam mediocridades, porque simplesmente perderam a disposição para lidar com elas. Percebi também que os holofotes não os atraem, e que se sentem absolutamente desconfortáveis no palco. Por isso buscam estar na platéia, aplaudindo, e mesmo apoiando o sucesso e o brilho dos outros.
Os invisíveis são pessoas que se mantém um passo aquém, justamente por estarem sempre um passo além.
Então, num grupo, ou numa comunidade onde eles percebam que há pessoas cuja vaidade os impulsiona a alardear seus feitos, seja velada, seja abertamente, os invisíveis simplesmente permanecem calados, ou se afastam, por saberem que lavar cabeça de burro é gastar tempo água e sabão.
Um invisível sabe que a vaidade não resiste ao tempo, e que diminui muito o feito do vaidoso, não importa quão grande possa ser. Eles também sabem que quem tem pronta a língua, não tem pronta as mãos. Por isso ele observa. Todo invisível é um observador. Ele prescruta o ambiente e as pessoas em busca de sinais de vaidade, e se a encontrar fechar-se-á sobre sua invisibilidade e apenas observará.
O invisível tem muito a dizer, mas apenas para quem tem ouvidos para ouvir, que são poucos. O conhecimento de um invisível foi depurado pelo tempo e consiste da essência das coisas. Ao longo do caminho que o trouxe até à invisibilidade ele comparou, intuiu, observou, separou o joio do trigo e ficou apenas com a essência do que o rodeia, que, por ser essencial, é de pouco volume, mas de grande densidade.
Um invisível costuma fazer uma só tentativa, quando muito, de levar luz aos olhos do tolo e fazê-lo enxergar, porque considera que as circunstâncias podem tê-lo levado àquele estado de ignorância. Mas dificilmente fará uma segunda tentativa, porque preferirá sempre não perder tempo com a mediocridade.
Talvez seja por isso que uma das mulheres mais notáveis do séc. XX, Indira Ghandi, disse certa vez, reeferindo-se aos invisíveis do mundo:
"Há dois tipos de pessoas: as que fazem o trabalho e as que recebem os louros. Tente se envolver com o primeiro grupo. A concorrência é muito menor lá."
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