Não matarás

Há poucos dias, eu soube pela Internet que duas personagens lésbicas da novela Em família vão se unir, com direito a aliança, relacionamento sério e cena de beijo entre as duas no fim do capítulo.

Encontrei comentários de pessoas que afirmam que tal conteúdo é “desnecessário” porque “estimula (?) a homossexualidade” e que a “destruição” (!) de um casamento devido a uma relação homossexual não deveria ser assunto abordado em novelas. Por isso, convido-os a refletir comigo.

Imaginem se Machado de Assis tivesse deixado de descrever em Dom Casmurro a situação de Bentinho e Capitu - discutida até hoje, cento e quinze anos depois, em que alguns acreditam ter de fato se tratado de adultério, e outros não - porque em algum momento tivesse pensado que o fato fictício fosse incomodar os leitores a ponto destes taxarem-no “desnecessária”? E se Eça de Queirós não zombasse da - e desta forma denunciando a – corrupção do clero em seu romance mais conhecido, “O crime do Padre Amaro”, escrito em 1875, devido à mesma preocupação? Já imaginaram se Oscar Wilde se sentisse desmotivado a ponto de não criar em seu “Retrato de Dorian Gray” (1890), a história do pintor que sente atração por seu modelo preferido?

Agora propondo exemplos mais recentes, já pensaram se Lázaro Ramos não aceitasse trabalhar em papéis de assaltante, traficante, sequestrador em novelas e filmes por medo do preconceito? Ele, a propósito, já interpretou um homossexual: o protagonista do filme Madame Satã. O que seria de nós, o público, se um artista deixasse de lado criações incríveis devido ao receio de prováveis reações negativas a seus trabalhos?

Portanto, afirmo que todo tipo de conteúdo, seja ele positivo ou negativo deve sim ser divulgado e que o artista deve sim criar personagens e seus comportamentos, não pensando se estes são “certos” ou “errados”, mas sim que tais situações EXISTEM. Tornar público, sim, para que nós, os que vamos apreciar o trabalho, possamos emitir nossa opinião, discutir entre nós, com os jovens e crianças (caso o conteúdo seja adequado para a idade) o que é retratado. Explicar para o pequeno que o Homem Aranha bate nos inimigos mas que isso é errado (bater e rotular alguém como “inimigo”), estimulando o sentimento de paciência e tolerância. Explicar para o adolescente que o videogame que ele joga, em que o personagem rouba carros mostra um comportamento ilegal e perigoso. E comentar com nossos amigos que – voltando ao assunto da novela – casamentos acabam e novos relacionamentos podem surgir logo em seguida. Acontece na vida real.

Fico preocupadíssimo quando me deparo com opiniões de pessoas que preferiam que os filmes, novelas e demais programas televisivos passassem por censura. Não se deveria nunca mais pensar em censura! Cortar cenas, proibir programas, de jeito nenhum. Devemos nós mesmos ter a liberdade de escolher qual conteúdo acessar. Imaginem se tais regras fossem ditadas pelo governo. Imaginem o que devem sofrer os norte-coreanos e também os venezuelanos na época de Chávez, que tocava violão e cantava na TV (não sei se ainda acontece, se o sucessor do falecido tirano tem os mesmos hábitos), com a programação televisiva limitada a vangloriar diariamente, exaustivamente seu ditador. Não, amigos! Isso seria um desastre.

Agora sobre as moças que vão assumir um relacionamento. Estímulo à homossexualidade? Ora, só diz isso quem não sabe que um indivíduo não se torna homossexual. Ele(a) já nasce assim. Mas e no caso de pais e mães de família que assumem a homossexualidade? Esta é uma das partes mais tristes da história, cujos personagens sentiram-se pressionados pela sociedade a estabelecer uma relação e casamento “de acordo com os princípios”. Ponham-se no lugar e imaginem como devem sofrer estas pessoas. Portanto, quando alguém nestas condições assume sua orientação sexual, não significa que “escolheu” ser gay ou lésbica, mas que até aquele momento não se sentia seguro para fazer tal revelação.

Às vezes podem acontecer em nossas vidas mudanças que não vão agradar a todos. Mas acredito que nem por isso deve-se deixar de viver o amor. Trata-se da dramática escolha entre fazer o que pede o coração e ser feliz ou fazer aquilo que a família, a sociedade e/ou a religião impõem e tentar sobreviver com isso.

Os homossexuais finalmente conseguiram o direito de se casar legalmente e adotar crianças. É por meio destas conquistas recentes e também através da constatação do aumento de famílias formadas por mães solteiras, pais solteiros, padrastos e madrastas que se pode afirmar que surgiram nos últimos anos os mais diversos tipos de formação familiar, e que as chances delas darem certo são semelhantes às chances daquelas cujo modelo é tido como tradicional (pai, mãe e filhos). Ainda assim o preconceito prevalece, como um mal incurável.

As crianças adoram ver os combates de MMA, os desenhos em que os super-heróis humilham os vilões, espancam-nos. E quantos não são os marmanjos que deliram com as lutas de boxe, filmes de guerra no cinema, na TV e agora na Internet. Quanto material considerado "clássico", enaltecendo agressores e taxando-os de heróis, vencedores, patriotas e o público aplaudindo...

E quando são exibidas cenas fictícias, ou mesmo na rua se vê dois homens ou duas mulheres de mãos dadas, a rejeição ainda é quase unânime. Preferem a hostilidade entre heterossexuais ao invés do amor declarado de pessoas homossexuais.

Ainda sonho com o dia que um casal formado por duas pessoas do mesmo sexo, visto na praça em frente a Catedral, seja algo considerado normal e que as pessoas que presenciarem, ao invés de demonstrarem repulsa, comemorem o privilégio do amor correspondido e vivido por aqueles dois. Digo em nome dos amigos gays, que apesar de já terem até direitos garantidos por lei passam pela situação absurda de não poderem curtir uma tarde de final de semana a dois em locais públicos, por medo de serem insultados ou até mesmo agredidos.

Há quem considere a união homossexual desrespeitosa aos “preceitos bíblicos”. Pode ser, mas vamos ser honestos: até mesmo padres, bispos, pastores, entre outros, o fazem. Basta lembrarmos dos casos de abuso de crianças, extorsão e também o conhecido caso daquele líder religioso de nossa cidade que mora numa mansão, além dos inúmeros casos absurdos de religiosos poderosos que flutuam num mar de luxo, desfrutando de supérfluos de proporções gigantescas. Nem eles, que deveriam, por ser quem são, dar exemplos, nem eles, meus caros, respeitam os tais “preceitos bíblicos”. Sem falar nos tempos dos réus queimados nas fogueiras da Inquisição. É possível associar tais assassinatos daquela época aos “preceitos bíblicos”?

Termino por aqui, repetindo as palavras de algumas pessoas cuja opinião concordo: seja lá como for, viva o amor!