Às vésperas da Copa, Fortaleza fecha os olhos para prostituição ao lado do Castelão

Por: Roberta Tavares em Cotidiano
Elas chegam ao local de trabalho praticamente ao mesmo tempo em que os operários pegam suas ferramentas nas obras do entorno do Castelão, palco da Copa do Mundo em Fortaleza. A diferença é que o material de trabalho dessas mulheres é o próprio corpo. Às 9h, em plena luz do dia, já estão encostadas em postes e muros, que servem de vitrine da prostituição na avenida pela qual milhares de estrangeiros passarão para assistir ao Mundial.
A menos de 1 quilômetro da Arena Castelão, na Avenida Juscelino Kubitschek (antiga Avenida Padaria Espiritual), no Bairro Passaré, diversas meninas com o corpo ainda em formação são abordadas, em toda a extensão da via, por homens em carros e em motocicletas. As roupas são curtas e apertadas. Dia após dia, a rotina é a mesma: ter de lidar com os diversos tipos de pessoas e se “entregar”, mesmo sem vontade. Faltando um mês para o megaevento esportivo, a cidade mostra que ainda não superou a fragilidade quanto à exploração sexual.
Há oito anos, a mulher de corpo farto, cabelos pretos, pele morena e unhas postiças amarelas sai de casa para se prostituir. Para apurar um bom dinheiro, a jovem de 28 anos trabalha quase 9 horas por dia, de segunda a sábado. É mais barato “comprar” uma mulher que assistir, da arquibancada mais em conta, a um jogo de Copa do Mundo no Castelão, ali próximo. A média é de apenas R$ 50, mas algumas vezes cobra mais, “dependendo do cliente”, explica Valéria.
Cerca de 65 mil estrangeiros devem visitar a capital cearense durante o evento, conforme dados do Ministério do Turismo. Mas, especificamente naquela avenida, o movimento será menor, de acordo com a ex-doméstica. A via será interditada, impedindo o acesso de carros e facilitando apenas a passagem de pedestres. “A Copa tá vindo pra cá e acabou com a gente. Eu creio que vá ficar bom só em agosto. A polícia vai fechar os dois lados da avenida. Se a gente não sair, eles ‘coisa’ (sic). Não vou debater com a polícia não. Tem policial ruim, né? Tem policial cruel”.
egundo Valéria, na Copa das Confederações o movimento foi fraco, devido à presença da Cavalaria e do Batalhão de Choque. “Eles não aceitam prostituição durante o evento, por uma parte eles estão até certos, porque aqui realmente tem muita menina que rouba. Tem certas meninas que usam ‘Boa Noite, Cinderela’ quando tem gente de fora, mas eu não uso nada disso não, prefiro trabalhar honestamente. É por isso que a polícia vai tirar a gente daqui, tá entendendo? Quando tiver jogo no Castelão, não pode ficar aqui”, explica.
Fora do período do Mundial, a polícia, entretanto, passa com pouca frequência pelo local. E, quando passa, parece ignorar a presença das garotas. De acordo com a jovem, “eles respeitam e não dizem nada”. Nenhum responsável por órgão da prefeitura tenta reprimir o trabalho das meninas. “Só quem perturba são os evangélicos. Eles reclamam, e todo mundo sai de perto, porque ninguém tá nessa vida pra pedir ajuda a Jesus”, diz.
Valéria está há tanto tempo no local que aparece inclusive no Google Maps (serviço de pesquisa e visualização de mapas e imagens de satélites). Ela começou se prostituir por iniciativa própria, quando tinha 18 anos. Os pais foram morar em São Luís, e a garota resolveu continuar em Fortaleza e entrar na ‘difícil vida fácil’. “Eu queria conseguir as coisas e nada tinha quando era empregada doméstica. Eu pensei: ‘quer saber de uma coisa? Vou sair dessa vida’. Aí comecei a me prostituir e veio tudo muito fácil. Na vida de prostituição as coisas é fácil (sic)”.
Mas há disputa por território. Ela não passou por esse problema, porque é antiga no local. Agora, se chegar uma pessoa nova no ponto, “a gente bota pra correr mesmo”, enfatiza. “Mês passado, chegou uma menina de 11 anos, que não tinha nem peito, aquela menina não tinha nada, mas ela tava totalmente drogada. Aí eu peguei pelos cabelos, arrodeei a avenida com ela e mandei ir embora”, revela.


Mesmo conseguindo juntar, em média, R$ 300 por dia, Valéria não economiza o dinheiro apurado. “Dinheiro de prostituição não é abençoado”, como ela própria afirma. Dá para pagar o aluguel, as contas e comprar roupas, para manter a aparência que a sustenta. A esperança está em algum cliente que porventura apareça e queira lhe dar mais que o valor do programa. “Eu já me sinto cansada, sei que um dia vou ter que parar. Quem sabe apareça um homem bom e me tire dessa vida”. Os clientes, em sua maioria, são mais velhos. Empresários ou advogados. Dificilmente atende estrangeiros.
A alguns quarteirões dali, Rebeca se maquia à espera de um cliente. Quando o carro diminui a velocidade, ela exibe o corpo e se aproxima. A travesti prefere não se identificar por medo de ser descoberta. “Tenho um caso, e ele não sabe que estou aqui”. Só a mãe aceita a escolha.
Com vestido de estampa de oncinha colado, batom vermelho e salto altíssimo, a jovem, de 25 anos, se prostitui há 9 e consegue por dia R$ 200. A falta de dinheiro em casa levou a jovem a sair da escola e ficar na rua. Começou ainda menor de idade, após abandonar os estudos. Com a infância interrompida, perdeu a expectativa de futuro. Não se sente bem fazendo programas, só faz para sobreviver porque não tem outra profissão.
A Copa do Mundo afetará diretamente o trabalho de Rebeca, assim como o de Valéria, em razão da interdição da avenida. “Piora o movimento. Eu vou ficar em casa vendo o jogo. Só quem vai trabalhar serão as viciadas”.
Medo de descobrirem
Casada e com quatro filhos, Tatiana, de 32 anos, tenta manter segredo quanto ao trabalho, iniciado há quatro meses como tentativa de apurar dinheiro extra. Ganha menos de um salário-mínimo na profissão de costureira. A situação é cruel, mas é a única solução encontrada por ela para sustentar a casa. A escolha da avenida para fazer programas deu-se pelo fato de ser conhecida por quem deseja usufruir do trabalho das garotas. “Se você perguntar onde faz programa, todo mundo fala dessa avenida. Aqui é melhor do que a Beira-Mar”, lembra Tatiana, referindo-se a um dos cartões-postais da capital.
Durante a Copa, ela pretende ficar com a família, para aproveitar o tempo livre ‘perdido’ durante os meses de trabalho. “Ainda não conheço ninguém por nome. Eu até me sinto bem, por causa do dinheiro, mas, por outro lado, é ruim por causa dos meus filhos e do meu marido”, se entristece. “O meu medo é que a minha filha mais velha, que tem 16 anos, descubra e queira fazer a mesma coisa. Aí quem vai ser eu para julgar?”.
Mesmo tendo começado há pouco tempo, Tatiana já consegue mais de R$ 400 por dia, na rua. O começo, segundo disse, não foi difícil. Apenas chegou ao local, ficou no ponto e esperou os clientes. “Não tive nenhum problema, e tenho clientes fixos. Atendo médicos, advogados e promotores. Não tem um dia que eu não faça nenhum programa, sempre faço mais de três”, comemora.
A Copa não será cancelada, como elas desejam. Durante o evento, todas sumirão da avenida. Quando o Mundial for embora, entretanto, o cenário de prostituição e tristeza voltará a imperar, a poucos metros do palco que o mundo viu brilhar.
Durante a apuração, o Tribuna do Ceará flagrou menores de idade fazendo ponto na Avenida Juscelino Kubitschek. Desconfiada, uma delas se recusou a falar, afirmando que não trabalhava no local. A outra não foi entrevistada, porque entrou em um carro para fazer um programa no momento em que a reportagem se aproximava.
O que fazer?
É fácil ver o problema no entorno do Castelão. Para Magnólia Said, do Comitê Popular da Copa em Fortaleza, a situação é super visível e faz parte de um pacote para servir ao turista. “Meninas disponíveis estão nesse pacote, de forma até escancarada, e o Poder Público fecha os olhos para isso”, afirma.
Segundo ela, as garotas saem do interior em busca do príncipe encantado que esperam encontrar durante a competição. Por trás disso, há sonho de melhores oportunidades. “Como vem muito turista, a Copa é um convite para as mulheres solteiras de 12 a 30 anos. É nesse momento que ela espera encontrar o príncipe”, destaca.
Magnólia revela que não há nenhuma campanha de fato contra a exploração sexual ou o tráfico de mulheres. Em uma ida ao Aeroporto Internacional Pinto Martins, na capital cearense, a integrante do Comitê teve dificuldade de encontrar algum folheto explicativo de combate às práticas. “Consegui encontrar um serviço de apoio ao imigrante, no fim do aeroporto, abri uma porta, tive um acesso a um corredor, e só depois de perguntar, consegui um material em português, que estava estocado. Ou seja, não tinha material em inglês, em alemão ou espanhol. O foco era mostrar aos brasileiros como se comportar lá fora”.
A sugestão é que o Poder Público e a sociedade trabalhem juntos para combater a exploração. A ideia seria criar campanhas televisivas, que não fossem veiculadas apenas durante o Carnaval, mas sim em todo o ano; aumentar o número de conselhos tutelares, de seis para 25; e ampliar o atendimento da Delegacia da Criança e do Adolescente para os domingos e feriados. “Se o governo quisesse, daria tempo de minimizar o problema ainda antes da Copa”, enfatiza. “As casas de prostituição vão ferver agora. E a violência doméstica também”, completa.
De acordo com a presidente da Fundação Municipal da Criança, Tânia Gurgel, haverá uma central de atendimento específica para denúncias durante os 30 dias de competição. Serão 120 educadores nas ruas para conversar com turistas e moradores, como parte do plano de ação de combate à exploração sexual. “Existem parceiros fundamentais e que precisam compreender isso. Taxistas, vendedores do Centro e da Beira-Mar, esse pessoal todo precisa ser motivado a defender essa questão”, diz Tânia.
Prostituição infanto-juvenil
O Código Penal diz claramente: pagar para fazer sexo ou praticar ato libidinoso com menores de 18 anos é crime de favorecimento à prostituição de vulnerável. A pena, prevista no artigo 218-B, vai de quatro a dez anos de prisão.
Já era assim desde 1990, quando foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas divergências jurídicas sobre o texto levaram o Congresso a mexer no Código Penal em 2009, explicitando que a punição vale para cafetões, clientes e donos de motéis. Em Fortaleza, porém, cenas de prostituição infanto-juvenil continuam se repetindo.
Para denunciar casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, é preciso ligar para o Disque 100 – Central de Atendimento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência.