Uma dose de realidade
Esteta professo, desde quando iniciei a escrever prometi a mim mesmo que jamais relataria sobre a vida real; modéstia à parte, tenho um belo engenho, que deve ser melhor empregado na construção de sonhos do que retratar como a realidade é feia – disso todo mundo já sabe. Não é esta a principal função da Arte, e um dos maiores problemas de nossos tempos é quererem pretender que seja – mas, pelo menos uma vez, julguei ser necessário me despir dos apetrechos da Ficção para esclarecer algo muito importante sobre minha pessoa, que não está presente em minha obra do modo que deveria e provavelmente jamais o estará, mas que em dias como os nossos é importante reiterar.
Sou um homem abertamente bissexual e também neurodivergente, diagnosticado com autismo tão somente bem recentemente, em 2021. Já aos 10 anos de idade levantei as suspeitas de também gostar de homens – um de meus colegas de classe do 4º ano veio a me despertar o ideal andrógino que seria minha hiperfixação e minha vergonha por anos. Lutando contra mim mesmo, além das várias mulheres que passaram por minha vida também houve alguns rapazes, a quem amei e contemplei em segredo do Ensino Fundamental ao Médio, e que poderiam muito bem ter sido belamente homenageados em meus escritos, não fosse o nojo que sentia de mim devido aos padrões que sempre me foram impostos – até que encontrasse a serenidade de espírito para me aceitar como sou e “sair do armário”, levaria anos em embate contra aquilo que achava ser uma mácula de meu ser.
De onde, porém, veio minha predileção por rapazes andróginos, em primeiro lugar? Quem dera o soubesse. Talvez tenha algo a ver com minha infância nos 90s, assistindo àqueles desenhos animados japoneses repletos não só de homens, mas de mulheres perfeitas, e quase que inalcançáveis na vida real – mesmo aqueles por quem me apaixonei mal se equiparavam a seus counterparts fictícios. Mas, por ora, isto não vem ao caso.
Afora minha orientação sexual, também lutei contra o autismo por praticamente toda a vida, sem que ao menos soubesse o que era – e, quando o soube, também me senti envergonhado por ser inadequado a uma sociedade à qual eu não entendia, e que também jamais entenderia a mim. Todo e qualquer esforço para me adaptar resultava unicamente em mais dor emocional e humilhações – 90% de ambas causado por minha própria família. Graças ao carinho e ao apoio de alguns grandes amigos, aos poucos também acabei por abraçar esta minha condição, e ainda hoje sigo aprendendo a viver com ela.
Tendo, portanto, revelado isto (à plateia assídua de uma única pessoa), pode ser que me perguntem: “Ora! Mal lemos em seus trabalhos sobre suas lutas diárias, se é que as tem mesmo como o diz!” E as tenho. Sempre as tive. Como toda minoria, é de praxe que eu combata a homofobia e o capacitismo em base quase que diária, mas prefiro guardar meus combates a mim mesmo, pois de nada agregariam à minha obra. Como já disse, minha ambição como escritor é ser conhecido por minhas habilidades criativas, e não por terem pena de minhas condições.
Sou bissexual, mas não participo da assim chamada “comunidade LGBT” pelo mesmo motivo: minha orientação sexual não influencia meus atos, ou, melhor dizendo, não deixo que minha personalidade orbite ao redor de um único atributo. Inclusive, arrisco dizer escondido em minha insignificância que um dos principais motivos do ostracismo dos LGBT é exatamente este: por adotarem tão somente um atributo que os define, só perpetuam os velhos estereótipos negativos. Não só isso, como também não gosto do termo “comunidade” – é quase como se fosse uma perversão da amizade, uma hive mind sem vontade própria. E uma de minhas principais sustentações sempre foi, e sempre será, a vontade própria: nunca conseguiram me obrigar a pensar como o coletivo, e não penso que o conseguirão any time soon.
Eu muito bem poderia incluir mais personagens neurodivergentes e LGBT em minhas obras, mas ao mesmo tempo que poderia ser tão desafiador quanto divertido, por ora não julgo necessário. Como resultado do triste quadro dos dias atuais, não gostaria que atribuíssem conotações sociopolíticas a meu trabalho – principalmente porque gosto de falar de mim, e tão somente de mim, nele. Assim sendo, não posso, tampouco quero, receber o fardo de ser uma das “vozes da representatividade”. Quando, e se, o fizer, será como tudo que escrevi até então: por ter sentido que o devia fazer.
No mais, não pretendo invalidar as lutas de meus irmãos; só porque prefiro me manter distante, não quer dizer que eu também não sofra do famigerado preconceito construtor das sociedades. Sempre que necessário, escreverei aquilo que puder lembrando-os de que temos nossos direitos, afinal, pois como escritor minha linha de frente é o papel e a caneta, tão mais poderosa do que a espada, minha arma.
(São Carlos, 24 de maio de 2024)