G L O B E L E Z A

G L O B E L E Z A

Janeiro. Mês que antecede o carnaval. Neste ano a festança começa mais tarde. Em março. Na telinha Global a frenética vinheta de chamada do folguedo, dito profano. Com um diferencial.

Será procedida escolha, em várias etapas, da nova Garota Globeleza. E tome remexido. Tome rebolado. Tome bundas à mostra, sob o background das baterias das escolas de samba.Tome comentário dos ditos analistas... A maioria deles semanticista, hiperbolizado, procurando dourar o pontual de um certame chinfrim. Chega o dia da final. É feita a escolha. Pasmo, choro, emoção.

Aquele ritual piegas, manjadissimo... Mãe da ganhadora jura, comovida, ter-se realizado o sonho acalentado, de há muito, pela filha. Fato aleatório. Fortuíto! Mesmo assim, o sonho realizado... ora, ora...

Nua! Que inversão de valores, meu Deus! Chega de alienação!!!

A hipocrisia Global finge ter-lhe sido destinado um lugar de destaque, embora com a condição sine qua nom de desnudá-la. A partir de agora ostentará um neologismo: Garota Globeleza.Porém, nua! E ela, assim, passa aproximadamente trinta dias exposta, sob os olhares de cobiça sexual dos marmanjos, submetida a opinião contraditória de toda ordem. Objeto sensual, sexual, apenas.

E, assim, a mulher negra segue sua saga de discriminada, embora nesse período detenha um papel de aparente relevância na sociedade dita de consumo. Que a consumia. Que a consome. Que continuará a consumi-la. De várias formas. No passado, como mulher objeto, iniciadora forçada e antepasto dos prazeres sexuais do senhorzinho na senzala. Um pouco mais tarde, uma híbrida ascensão: mucama, acompanhante das sinhás nos passeios e atividades de lazer destas. E para variação, também, de concubinagem do senhor de engenho. Senhor feudal.

Assim continuou a cumprir seu papel na sociedade da época. Papel subalterno. Porém, agora, se esmera, procura melhorar, ombrear com as outras de gênero, para se fazer respeitar. Embalde. Continua a ser vista como ser inferior; guerreira, não se entrega, busca seu lugar em todos os campos de atuação. Como qualquer ser humano, tenta um lugar alternativo no campo profissional. Inclusive nas artes cênicas, na dramaturgia televisiva.

Só que, agora vestida - estranho paradoxo - impõem-se-lhe papéis secundários, o principal deles de doméstica. Negam-se-lhe, diuturnamente, personagem de destaque sob a alegação de não ostentar a imagem preferencial da classe dominante. Só a querem nua? Ou na horizontal? Durante o restante do ano a si é destinado o pouco apreço de sempre. Afinal foram trinta dias de exposição. Nua! Já basta, não é? Nesse lapso de tempo foi admirada, cortejada, nua! é suficiente... Prá que mais?E tome papeizinhos ridículos e despreziveis.

Empregadinha analfabeta, tipos caricatos, imbecilizada, prostituta, favelada; e vai por aí... Contradição, espanto, perplexidade: afinal, ela é do nosso Brasil de todas as raças, de todos os credos. Onde não existe religião de estado... Não há preconceito de ordem alguma... Afinal de contas somos uma democracia racial modelar... Qual!!! Até os alienados do hospício aqui da Tamarineira desacreditam... (sic!) Somos ainda por cima o país do surrealismo, do realismo fantástico, do faz de conta, da mentira... Dos “fariseus do boulevard”, no dizer de Chico Buarque...

Mas resta um consolo. O tradicional, anacrônico e estilizado desfile das escolas está à porta, no qual ela poderá ter alguns minutos de destaque. Com uma ressalva: o lugar de rainha de bateria - grande coisa! - já está ocupado. Por uma daquelas figuras descompromissadas com as tradições das comunidades, e da própria escola. Modelo, Manequim, ou Atriz. OU OPORTUNISTA? Ou ARRIVISTA? Em outros tempos teriam até vergonha de freqüentar o ambiente - pouco ortodoxo - do samba.

Para elas o importante agora são os holofotes. A mídia em geral. Em detrimento daquela que participou de todos os ensaios, conhece e é ambientada na escola. Não seja por isso. No ano próximo carnaval novamente. Com Globeleza e tudo. Papel secundário para ela? Nua? Não se sabe... Talvez tudo se repita, com as mesmas inversões de valores de sempre. Até quando, nua?? Aproprio-me das palavras do grande jornalista Adalberto Ribeiro: "só Zeus sabe"... Recife, 27 de fevereiro de 2014.

ANTONIO LUIZ DE FRANÇA FILHO

Membro da maçonaria

ANTONIO FRANÇA
Enviado por ANTONIO FRANÇA em 03/03/2014
Reeditado em 24/05/2019
Código do texto: T4714086
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