ERGUENDO "TAÇAS"

Definitivamente deve haver um grande elo entre o ato de erguer copos, em mesas de bares e botequinhos, que dá ao ser a sensação de soberania. Ali, rodeado de seres semelhantes, o gesto sempre é seguido de calorosas risadas. O mundo abandona todos os problemas reais e viaja na fantasia. Fantástico isso! A capacidade de um gesto de abandonar sua vida real e varrer para debaixo de um tapete toda a sua omissão em seu próprio lar. Tive grandes oportunidades de assistir cenas assim. Um cenário cujos protagonistas se assemelham em talento aos grandes e renomados atores. Porém ainda é mais fantástico, pois eis ali um dublê de sí mesmo. Isso! Identidade de dois em um, e que para alegria geral dos bebuns dos botequins, ambas nunca se encontram. O botequim acaba sendo um grande palco da fantasia e esses protagonistas são carismáticos a tal ponto que, correm o risco de ali mesmo serem postos em altares por seus grandes amigos coadjuvantes. Interessante é que há papéis para ambos os sexos. Um roteiro onde exaltar um bem-estar, ainda que ilusório, é quase uma competição ou mesmo ritual. Já tive a oportunidade de levantar tapetes, por mera curiosidade, para ver o que o " gente boa" escondia ali. Sabem aquele cara bacana, o protagonista que ergue sorridente as suas taças ( traduza como copos sujos), que tem horário marcado no boteco, cujos coadjuvantes o exaltam? Então, infiltrei, fui levantar o tapete dele. Nunca que eu, simples e mera expectadora, revelaria que tipo de homem vi .

Esse mesmo, feliz, de bem com a vida, tem coisas debaixo do tapete. Quem não tem? Todos temos. Atores de botecos porém são invejáveis, dada à capacidade que tem de se tornarem o quadro perfeito no cenário. Felizes das famílias que não possuem tais atores. Digo felizes, porque o Ministério da Saúde adverte que sujeira debaixo do tapete é altamente prejudicial ao lar harmonioso e ao desenvolvimento dos filhos. Como esse assunto despertou-me imensa curiosidade realmente não tenho ideia. O certo é que não pude deixar de fixar meu olhar na cena que vi em um boteco, ao passar em frente a um desses estabelecimentos. O que vi era um retrato de pessoas que negligenciam seus lares, verdadeiros covardes debruçados sobre as mesas e sobre o balcão. Pensei nas mães que esperavam tais filhos à mesa do almoço e nos filhos que esperavam seus pais nas horas do dia. Pais ausentes. Pais que talvez deixassem para os próprios filhos alguma coisa que passasse longe de conforto financeiro, mas nunca lembranças de bons momentos compartilhados. O álcool não tem um poder destrutivo quando tais seres erguem seus copos cheios. Não para eles, que optaram por compartilharem suas horas ali erguendo seus castelos de areia. Seria crueldade ou sensatez julgar o valor de um homem assim a partir dos meus próprios valores? Prefiro perguntar aos filhos de tal homem:

_ Ei, você teve pai?

_Ei quantas lembranças de lazer vocês possuem?

Talvez só os filhos possam dizer qual é o poder de um copo cheio de álcool nas intermináveis horas nos botecos que acolhem os seus pais. Pois nem eu, a mera expectadora equivocada, nem o ator de tal cenário, seríamos fiéis nessa avaliação. Eu, destilaria meu veneno, pois acho nojento e repugnante esse espectro de homem. E tal homem, por sua vez, prefere viver na ilusão de que foi um grande homem. Sempre terá um discurso defensivo de que possui exaustivo trabalho e de que precisa relaxar. O certo é que esse dublê de si mesmo em algum momento da sua existência, quando se olhar no espelho do tempo, saberá que solidão é um jardim semeado nos balcões de botecos. Passa a vida... passam filhos... passarão... passaram! E o velho caminhante volta ao bar, precisa de mais um trago.

Simone Stone
Enviado por Simone Stone em 02/02/2014
Reeditado em 03/02/2014
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