Omar à vista! (?)
“O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito” – Dorival Caymmi. Uma baita verdade isso, ainda mais cantado pela bela voz grave, profunda, afinada e melodiosa do saudoso grande cantor e compositor baiano, acompanhado apenas pelo seu violão repleto de tessituras sonoras. O mar é sempre lindo, faça chuva, sol, seja dia ou noite. Ouvimos o imenso e onipresente som das ondas. Quando há pedras na praia, podemos ouvir também o choque entre ambas, intermitente, contínuo, sistemático, alterado apenas pelos humores do tempo.
“É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar”. Agora eu tenho de discordar do Caymmi! Não vejo nada doce em morrer. Morrer, pelo que eu já vi nessa vida, é uma droga amarga, sem escape. Ainda mais morrer no mar, nessa imensidão de água salgada. Morrer afogado? Ou comido por um tubarão? O que pode ter de doce nisso? Só estando muito bêbado, talvez. Acho que o baiano construiu esta metáfora quando estava de fogo...
O mar é bonito, assim como os olhos da mulher que a gente ama. Deveríamos fazer nossos filhos à beira da praia. Se meninas, seriam batizadas Marina; se meninos, Omar. Lá vem Omar. Omar à vista! “Terra à vista!” Os corajosos navegadores lusitanos quinhentistas, a bordo de suas pequenas e insalubres naus e caravelas, esperavam ouvir essa palavra a fim de pisar em terra firme, descansar, beber água potável, comer frutas frescas e, a história revela, se refestelar com as belas índias seminuas e francamente disponíveis para o amor.
Já nós esperamos as férias de verão para bradar: “Mar à vista”. Queremos o contrário dos portugueses de antanho. Ou melhor, queremos quase a mesma coisa: descanso, água potável, frutos do mar, frutas frescas e, se homens e de orientação heterossexual, mulheres. O contrário é que os portugueses estavam fartos de água, não eram mesmo chegados num banho e queriam pisar na terra; nós queremos pisar na areia e, principalmente, no mar.
Queremos também um lugar próximo à praia, para ficar olhando o mar, ouvindo seu som, admirando a vista. A vista para o mar. Mas hoje em dia, chegar ao litoral e bradar “Mar à vista” está difícil, com tantos prédios altos. Privatizaram a vista para o mar! Um acinte isso. Se a legislação não proibisse, com certeza fariam prédios de trinta andares à beira da praia! Por sobre a areia! Sobre a areia! Como? Ah, não sei, não sou engenheiro, mas que dariam um jeito, podem apostar que dariam. Prédios tão altos que alguém, lá do alto da sua cobertura, perguntaria: “Tem certeza que aquilo lá em baixo é o mar? Parece-me um córrego...”
Só deveria haver permissão para hotéis altos na praia, mesmo assim a um quilômetro da orla. Sem essa de gigantescos prédios particulares. Hotéis democratizam o acesso a vista para o mar, através do aluguel temporário de seus quartos. Os prédios não, são quartos com reserva permanente até para a vista para o mar. “Moras atrás de meu prédio? Dane-se, condeno-te ao concreto eterno!” Vista reservada para o mar, vejam só! Apropriação da obra que o Senhor destinou a todos. Só não se apropriam do som do mar por ser impossível. Pelo menos com a tecnologia hoje disponível.
Vejo esses prédios altos como um símbolo de ostentação, soberba, escárnio, antidemocracia e desigualdade social. Monumentos à falência de nossa sociedade e à injusta e abissal concentração de renda. Mesmo os hotéis são um pouco disso. Foram. Hoje as elites econômicas não querem mais os hotéis, os abandonaram à classe média e constroem seus prédios particulares. Um jeito de mostrar quem manda, quem pode mais, quem está por cima.
Todavia, o mar e a areia ainda são de todos. A praia é o local mais radicalmente democrático desse Brasil. “O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito...”
Texto publicado no Jornal Portal de Notícias em Dezembro de 2013.
“O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito” – Dorival Caymmi. Uma baita verdade isso, ainda mais cantado pela bela voz grave, profunda, afinada e melodiosa do saudoso grande cantor e compositor baiano, acompanhado apenas pelo seu violão repleto de tessituras sonoras. O mar é sempre lindo, faça chuva, sol, seja dia ou noite. Ouvimos o imenso e onipresente som das ondas. Quando há pedras na praia, podemos ouvir também o choque entre ambas, intermitente, contínuo, sistemático, alterado apenas pelos humores do tempo.
“É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar”. Agora eu tenho de discordar do Caymmi! Não vejo nada doce em morrer. Morrer, pelo que eu já vi nessa vida, é uma droga amarga, sem escape. Ainda mais morrer no mar, nessa imensidão de água salgada. Morrer afogado? Ou comido por um tubarão? O que pode ter de doce nisso? Só estando muito bêbado, talvez. Acho que o baiano construiu esta metáfora quando estava de fogo...
O mar é bonito, assim como os olhos da mulher que a gente ama. Deveríamos fazer nossos filhos à beira da praia. Se meninas, seriam batizadas Marina; se meninos, Omar. Lá vem Omar. Omar à vista! “Terra à vista!” Os corajosos navegadores lusitanos quinhentistas, a bordo de suas pequenas e insalubres naus e caravelas, esperavam ouvir essa palavra a fim de pisar em terra firme, descansar, beber água potável, comer frutas frescas e, a história revela, se refestelar com as belas índias seminuas e francamente disponíveis para o amor.
Já nós esperamos as férias de verão para bradar: “Mar à vista”. Queremos o contrário dos portugueses de antanho. Ou melhor, queremos quase a mesma coisa: descanso, água potável, frutos do mar, frutas frescas e, se homens e de orientação heterossexual, mulheres. O contrário é que os portugueses estavam fartos de água, não eram mesmo chegados num banho e queriam pisar na terra; nós queremos pisar na areia e, principalmente, no mar.
Queremos também um lugar próximo à praia, para ficar olhando o mar, ouvindo seu som, admirando a vista. A vista para o mar. Mas hoje em dia, chegar ao litoral e bradar “Mar à vista” está difícil, com tantos prédios altos. Privatizaram a vista para o mar! Um acinte isso. Se a legislação não proibisse, com certeza fariam prédios de trinta andares à beira da praia! Por sobre a areia! Sobre a areia! Como? Ah, não sei, não sou engenheiro, mas que dariam um jeito, podem apostar que dariam. Prédios tão altos que alguém, lá do alto da sua cobertura, perguntaria: “Tem certeza que aquilo lá em baixo é o mar? Parece-me um córrego...”
Só deveria haver permissão para hotéis altos na praia, mesmo assim a um quilômetro da orla. Sem essa de gigantescos prédios particulares. Hotéis democratizam o acesso a vista para o mar, através do aluguel temporário de seus quartos. Os prédios não, são quartos com reserva permanente até para a vista para o mar. “Moras atrás de meu prédio? Dane-se, condeno-te ao concreto eterno!” Vista reservada para o mar, vejam só! Apropriação da obra que o Senhor destinou a todos. Só não se apropriam do som do mar por ser impossível. Pelo menos com a tecnologia hoje disponível.
Vejo esses prédios altos como um símbolo de ostentação, soberba, escárnio, antidemocracia e desigualdade social. Monumentos à falência de nossa sociedade e à injusta e abissal concentração de renda. Mesmo os hotéis são um pouco disso. Foram. Hoje as elites econômicas não querem mais os hotéis, os abandonaram à classe média e constroem seus prédios particulares. Um jeito de mostrar quem manda, quem pode mais, quem está por cima.
Todavia, o mar e a areia ainda são de todos. A praia é o local mais radicalmente democrático desse Brasil. “O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito...”
Texto publicado no Jornal Portal de Notícias em Dezembro de 2013.