TAMBOR DE FAMÍLIA TAMBÉM TEM CONSCIÊNCIA. E ELA É NEGRA
Fomos convidados para fazer uma apresentação na Escola Municipal Dinorah Magalhães Fabri, no Bairro Flávio Marques Lisboa, mais especificamente na Vila Cemig. Sol escaldante, sexta feira, duas horas da tarde, muita sede e muito suor escorrendo pela face. Ao adentrar o portão principal da escola, um espetáculo fantástico se descortinou diante de nossos olhos. Bonecos artesanais em tamanho real, representando todo o viver dos negros africanos que aqui chegaram como escravos através do olhar periférico. O torcedor atleticano, o cruzeirense, a menina bonita, os alunos da escola, a representação de um movimento de capoeira, o operário, a dona de casa, a empregada domestica, as crianças, o operário, enfim todos ali representados demonstrando uma plena visualização da realidade no entorno da escola. Percebe-se que os alunos, pais e amigos, estão envolvidos no tema ali desenvolvido, exaltando a consciência negra em seu dia e apesar do sol escaldante dos corpos suados – a escola não tem uma quadra – cantaram, pularam e dançaram demonstrando uma efusiva alegria.
Em todas as paredes da escola, o cenário da escravidão. Trabalhos manuais, lembranças das velhas casas de adobe e pau a pique ferros de brasa, panelas de ferro, colares nos mais diversos formatos, feitos com os mais diversos materiais da natureza, troncos, bambus, sementes e as famosas bonecas de tranças. Num detalhe interessante, a senzala, que é vista, contada e recontada pela maioria como um lugar de dor, saudade dos que ficaram ou dos quais foram separados, lugar de sofrimento, do dormir no chão de terra batida, levando o nome porém, substituído por um lugar aprazível, com ar condicionado, cadeiras confortáveis e uma apresentação em vídeo da realidade já citada. O nome do vídeo é “Confidencias do Rio das Mortes” um documentário curto, seis minutos apenas mas com uma narrativa de muitos anos de penúria, lagrimas, sangue a escorrer pelas costas chicoteadas no tronco e do cheiro de morte. http://youtu.be/4yrq0nsdGl8
Noutro ambiente, os cantares e cantores das fazendas sob a vista do negro. Historias de negros ilustres para a maioria eternos desconhecidos, até mesmo de nós que nos importamos com eles, mas temos la a primeira professora negra, o primeiro medico negro e outros com o mesmo valor e importância, porque somos iguais, não só na cor mas também na sabedoria e entendimento. Numa coluna palavras alusivas à negritude; beleza. Flor, sensualidade, paz, luz, lagrimas, suor, sangue, saudade, distancia, fé, esperança, amor, verdade, certeza, justiça, imaginação, sonhos. Crianças envolvidas com o lazer e a liberdade; a bateria com ritmo de samba, cabrochas sambando, lavadeiras com suas bacias de roupa, as colheitadeiras com seus balaios e ou peneiras com o café, o milho e o algodão.
Quando o grupo do Tambor de Família cantou a “Caneca de Lata” com o seu pano enrodilhado, a historia da família em verso e prosa, enquadrou-se com perfeição absoluta naquele cenário de encantamento. Todos os professores presentes na escola e um deles passou todo o tempo a ler um grosso livro, que nem tive a curiosidade de saber o conteúdo, ou o nome, mas aquele professor fez a diferença com o seu exemplo, de busca do saber. Este é um trabalho que vem sendo realizado nos últimos onze anos; trabalho que sem a integração dos docentes, por mínima que seja, não se apresentaria de forma tão bela o espetáculo. Ali se vê a participação de todos, pois para acontecer são necessários os primeiros passos, lá na sala de aula, conscientizando ao aluno desde a mais tenra idade, a esta realidade que nos salta aos olhos.
Um forte momento de recordação foi estar na cantina, na presença das famosas cantineiras e com o tradicional prato de alumínio, comer arroz doce ao leite de coco. Recordei um tempo que vai ao longe, quando eu assim como cada uma daquelas crianças que ali estavam, em fila, era traquina, arteiro, moleque atrevido, mas adorava e necessitava comer o arroz doce, o mingau de fubá com couve, a canjica e principalmente o Nescau com biscoito coisas que eram uma raridade na mesa de minha casa.
Sessenta por cento dos presentes são afro descendentes, e num rápido olhar pelo entorno, vejo os telhados de amianto dos barracões abaixo da escola, e o que ainda resta da Vila das Antenas, parte da comunidade que esta sendo despejada que ao olhar para trás, vê tudo que possui na vida. Para o futuro apenas a expectativa do para onde vou, porque não tenho nada e este nada me está sendo tirado. Sorriso na escola, alegrias, felicidades, coleguismo, merenda e muito mais, mas, em casa aquela criança não tem nada, nem mesmo no deitar e dormir acontece um mínimo de conforto.
E o responsável por tudo isto? Deve ser alguém cheio de pose, pompa e circunstancia não? Afinal estamos falando de uma realização de sucesso.
Enganas se assim pensas; trata-se de uma mulher simples, única universitária na família numa casa de muitos irmãos, que também tomou sopa na lata de marmelada, tomou mingau na lata de goiabada e tomou café com farinha na caneca de lata. Vinte e cinco anos de dedicação à docência, ali, naquela escola. Ela é a historia, mas não fica so nisso. Em meio a esta historia tem outra historia. Uma historia com treze anos, de crescimento, de exemplo, de ensinamentos, de superação de vitórias. Uma vitória da Vitória que com sua vitória nos ensina um modelo de se superar e nos faz ver que incluir é mais do que estar presente. Incluir é estar de um lado, do outro lado, é estar na frente, é estar atrás, é estar verdadeiramente junto. Cada passo, cada realizar nos faz ver o poder existente na subjetividade. Jamais conseguiremos sentir o sentimento desta mãe, mãe da Vitoria, e mãe dos vitoriosos. Ela vê o seu sempre bebê erguer-se em seu querer e num ato de poder, conduzir o alimento à própria boca e num segundo ato, limpar os lábios, com todo o encantamento que tal movimento naturalmente produz. Ali esta alguém que além de se dividir com todo o universo escolar, com todo o universo comunitário, partilhar seu tempo de inclusão afetiva com uma filha especial aos olhos dos homens e aos olhos do Senhor. Ao mesmo se entristece ao ver um aluno sendo iniciado no submundo da droga, do trafico, do mal saber aos tenros doze anos e sussurra: “e saber que serão poucos anos de permanência neste período mortal, pois seu futuro já esta sendo selado”. Enquanto isto ela leva para o convívio em seu lar, e já o tem, assim como cada um dos seus familiares como um filho, outro jovem na mesma idade, cujos pais compartilham esta ausência do filhote nos fins de semana e sentem se seguros por saber que o filho está bem protegido do mundo exterior. Certamente em seu futuro, ao contrario do outro menino citado anteriormente será de muita luz, conhecimento e bem aventurança.
Bem, esta na hora de fecharmos as cortinas deste cenário tão especial que se descerrou sobre nós neste dia. O grupo artístico, Tambor de Família, une-se a este espetáculo com seu cantar, com seu som, com sua história sua presença marcante aonde todos nós sempre ao redor da matriarca, que vai marcando o compasso, sentada, cantando e sorrindo diante do seu instrumento, um caixa surdo de marcação, pontuando o nosso passo. Ao som de tambores, caixas, pandeiros, chocalhos, xique – xiques, numa diversidade de sons, rodeados pela criançada, nos unimos a historia de um passado recente, que jamais será apagada da memória dessa imensa nação chamada Brasil. Mas não podemos esquecer que esta grandiosidade aconteceu num pequeno ponto deste planeta chamado terra, bem ali, pertinho de nós, num cantinho das nossas Minas Gerais. E nós fizemos parte dessa historia e trouxemos os nossos jovens, adultos e crianças para o conhecer de outros jovens, adultos e crianças, numa troca permanente de saberes junto ao iluminar de nossos antepassados, Seu Isaias, Tio Zé, a Bisa, a Tia Rita, os Euzébios e as Carmélias, que são a força, o poder e a origem do nosso viver, do nosso caráter e do nosso cantar.