Gratuidade
 
   Alguns homens passam, não raro, suas vidas em debates sobre questões intrincacadas de Filosofia, discutindo o sexo dos anjos; outros, ao contrário, arregaçam a manga, esquecem-se da luta vã que se trava no âmago do intelecto, do "fastio que se apodera do homem diante do absurdo da vida", e percebem que nela  e nos homens há mais coisas a admirar do que a desdenhar.
   Pouco antes de morrer, dizia João XXIII ao pensador Jean Guiton: "O senhor é um intelectual. Cure-se disso. Complica as coisas simples com o seu cérebro. Eu, com o meu coração, simplifico as coisas complicadas... Não sou um sábio. Não sou um teólogo, Não sou exegeta".
   Algo semelhante sucede com irmã Natividade Cordeiro do Valle, mística e religiosa, que, a exemplo de Camus, não sentia também vergonha em ser feliz, mas "vergonha em ser feliz sozinha com Deus".
   Em 1986, a pedido de algumas mães, do Conjunto Santa Maria, em Belo Horizonte, ela fundou a Creche  Centro Infantil União, para que as mães pudessem trabalhar fora de casa para melhor cuidar de suas famílias. 
   Tudo começou de forma incipiente, improvisada – 30 crianças e uma monitora. Hoje, bem, são 300 crianças e 32 funcionários que trabalham "para poder proporcionar a essas crianças uma vida com mais dignidade, menos miséria, mais conforto, alegria e consciência de sua cidadania, dentro de uma postura nitidamente cristã", diz, com o seu jeito afável, irmã Natividade.
   Assim ela prossegue, orgulhosa: "Atendemos as nossas crianças com quatro refeições diárias, balanceadas, atendimento médico, odontológico, psicológico e pedagógico são, também, oferecidos às crianças. Irmã Natividade abaixa a cabeça, emociona-se, o sorriso desaparece de seu rosto iluminado, e eu percebo o por quê. Ela quer dar continuidade ao seu trabalho. Ela, atualmente, está com 84 anos de idade e precisa de ajuda para manter, com dignidade, as "suas crianças". Ela, que sujou as vestes brancas de seu hábito de religiosa, carregando com as crianças, pequenas crianças, tijolos, areia, enfrentando a dureza do serviço de construção da Creche. Tijolo e mais tijolo, o seu sonho foi-se delineando, aparecendo, deixando-se ver e tocar. Outras pessoas, então, começaram a acreditar nela – as paredes erguidas,molhadas de suor, as suas mãos calejadas de mestre-de-obras anunciavam a presença da Creche Centro Infantil União, no Conjunto Santa Marta, Rua Quatro 86, fone: 3296-7724.
   Para os vaidosos, os outros homens são sempre admiradores, mas ainda bem que muitos outros se alimentam, no cotidiano, do transcendente e são capazes de ler a mensagem do mundo: No efêmero, pode ler o Permanente, no temporal, o Eterno; no mundo, Deus.
   O homem, gigante criado por Deus, perpetua-se de muitas formas, deixa suas pegadas, seus sofrimentos, sua anguústia e sua glória, em cada tela, tijolo, em cada página, no mármore informe que ele transforma em cópia da vida. A comunicação se faz através do tempo: outras vidas vêem, dessa maneira, o que uma vida sentiu, sofreu, amou. 
   Muito além do mundo materialista, técnico-cientificista, da busca desenfreada do prazer e do ter, sobrevivem aqueles que erguem os braços, saúdam os transeuntes do tempo e os acolhem, na esperança, para saborear o sacramento.


Roberto Gonçalves