COMPLEXIDADE CRIMINAL
Com a publicação do livro “Dos Delitos e das Penas” (Dei Delitti e delle Pene”-1764) por Cesare Beccaria (1738-1794) a criminalística ocidental deu um salto civilizatório. Até Beccaria os delinquentes eram considerados sub-homens e castigados desumanamente. Os julgamentos, mesmo com pena de morte, não se baseavam em inquéritos com apresentação de provas dos crimes. Muitas vezes bastava uma simples denúncia para que o denunciado fosse jogado nos sórdidos calabouços inquisitoriais, condenado à morte, ou a degredo. A tortura fazia parte do sistema judicial. E que torturas!
Para se horrorizar com as tradicionais torturas, basta visitar algumas prisões medievais, hoje museus, cujo estilo perdurou até Beccaria. Em anexo a muitas destas prisões funcionava uma ferraria, para fabricar os instrumentos de tortura: agulhas para espetar debaixo das unhas; bolas de ferro para amarrar às pernas dos condenados, inclusive quando marchavam para a execução; tenazes para puxar e prender a língua; barras de ferro para aquecer e queimar as solas dos pés... Além disto, nestas prisões existia sempre uma câmara escura, em que muitos presos eram trancados por semanas e meses, e quando dali saiam, em contato com a luz do sol, cegavam.
Com os ensinamentos de Beccaria, que rapidamente se espalharam por toda a Europa, começou a se exigir inquéritos, júris, acusações e defesas. A justiça, com seus juízes, começou a ver os criminosos com olhos mais humanos. Isto já era efeito das ideias iluministas do século XVIII. Pois, os iluministas têm uma visão otimista do homem. Ensinam que o homem, por natureza, tende para o bem, e ele deve ser considerado inocente enquanto não se apresentarem provas em contrário. Quando alguém age delituosamente é necessário analisar as causas deste desvio de sua natureza. E as penas já não deveriam visar simplesmente uma vingança, mas reconduzir o ser humano ao caminho do bem. Esta era a visão dos filósofos e juristas iluministas.
Mas, nem todos os criminalistas assumiram este otimismo antropológico, e, principalmente os criminalistas positivistas do séc. XIX, chegaram a outras conclusões. Alguns conterrâneos de Beccaria desenvolveram uma sociologia criminal prática, positivista, que se considerava científica. Segundo estes criminalistas, existem certos criminosos irrecuperáveis. Até em seu aspecto exterior seria possível ver a sua propensão para o crime. Estes já estariam predestinados ao crime por nascimento. Hoje diríamos, nascem com “o gen do crime”. Depois do cumprimento de sua pena, voltariam a praticar os mesmos delitos.
Entre estes criminalistas encontramos Cesare Lombroso (1835-1909), com seu livro “O Homem Delinquente” ((1876); Raffaele Garofalo (1851-1934), com seu livro sobre “O Critério positivo da Criminalidade”(1878); Enrico Ferri (1856-1929), com seu livro sobre a “Negação do livre Arbítrio e Responsabilidade” ( 1878)), e “Sociologia Criminal” ( 1880). Estes criminalistas italianos, do positivismo jurídico, em sua maioria eram a favor da pena de morte.
Enrico Ferri, especialmente, em sua “Sociologia Criminal”, defende a tese de que existem criminosos de diferentes categorias. Segundo ele, existem criminosos, que não tem cura. Estes delinquentes considerariam sua prisão como acidente de trabalho. Entrariam na cadeia com o sentimento de que lá vão conviver com companheiros de profissão, e durante algum tempo poderiam viver às custas do Estado. Quando soltos, voltariam a praticar os mesmos crimes.
Em seu Projeto para o Código Penal Italiano, Ferri dividiu os delinquentes em diversas categorias: 1. delinquentes natos, que praticam seus crimes por instinto, ou por tendência congênita; 2. delinquentes loucos, que se tornam criminosos por atrofia moral, ou enfermidade mental; 3. delinquentes habituais – estes Ferri subdividiu em quatro categorias: a) Delinquentes habituais por tendência congênita, que geralmente praticam crimes de sangue, e são violentos por motivos banais; b) delinquentes que habitualmente praticam crimes leves; são delinquentes que não gostam de trabalhar, mas precisam sobreviver; c) delinquentes por hábito adquirido, muitas vezes por terem tido uma infância moralmente abandonada, sem o devido cuidado dos pais e uma educação deficiente; d) delinquentes profissionais, como os falsários, ladrões, estelionatários... 4. Delinquentes ocasionais: o ambiente os leva ao crime. Para estes vale o dito: “a ocasião faz o ladrão”; 5. Delinquentes passionais: são os criminosos movidos ao crime por paixões: honra, amor, ciúme, ódio, afeto familiar ou político-social.
Esta proposta de Ferri, da divisão dos delinquentes em categorias, com certeza foi um passo importante na criminalística. É polêmica, pois a muitos repugna admitir que existam pessoas que nascem destinadas ao crime, como se possuíssem um “gen do crime”. Mas Ferri tem razão quando mostra que existem criminosos com índoles e motivações diversas. O que leva necessariamente a uma qualificação dos crimes em leves, graves, hediondos, etc. E esta realidade também exige dos juízes uma dosimetria das penas. Os juízes serão desumanos se jogarem os diversos delinquentes, sem consideração, nas mesmas cadeias, misturando as diversas categorias de criminosos. Dos quais alguns seriam irrecuperáveis, outros cometeram crimes hediondos, junto com os que cometeram delitos leves. Uma justiça que assim mistura os apenados, deve ser considerada desumana, bárbara e cruel. De cadeias assim constituídas não sairão presos ressocializados e cidadãos honestos.
Os juízes, para serem justos, humanos e éticos, antes de pronunciarem suas sentenças, deveriam solicitar a outros profissionais pareceres sobre os delinquentes: psicólogos, sociólogos, antropólogos, agentes de saúde, economistas e outros criminalistas. Somente assim poderiam chegar a uma dosimetria penal adequada. Mas que juízes (especialmente no Brasil) se preocupam com isto? Muitos juízes nos tempos atuais, e entre nós, agem mais como carrascos do que como promotores de uma justiça humanitariamente civilizada. Dali a necessidade de protestarmos e lutarmos também por uma justiça mais justa em nosso país.
COMPLEXIDADE CRIMINAL
Inácio Strieder
Com a publicação do livro “Dos Delitos e das Penas” (Dei Delitti e delle Pene”-1764) por Cesare Beccaria (1738-1794) a criminalística ocidental deu um salto civilizatório. Até Beccaria os delinquentes eram considerados sub-homens e castigados desumanamente. Os julgamentos, mesmo com pena de morte, não se baseavam em inquéritos com apresentação de provas dos crimes. Muitas vezes bastava uma simples denúncia para que o denunciado fosse jogado nos sórdidos calabouços inquisitoriais, condenado à morte, ou a degredo. A tortura fazia parte do sistema judicial. E que torturas!
Para se horrorizar com as tradicionais torturas, basta visitar algumas prisões medievais, hoje museus, cujo estilo perdurou até Beccaria. Em anexo a muitas destas prisões funcionava uma ferraria, para fabricar os instrumentos de tortura: agulhas para espetar debaixo das unhas; bolas de ferro para amarrar às pernas dos condenados, inclusive quando marchavam para a execução; tenazes para puxar e prender a língua; barras de ferro para aquecer e queimar as solas dos pés... Além disto, nestas prisões existia sempre uma câmara escura, em que muitos presos eram trancados por semanas e meses, e quando dali saiam, em contato com a luz do sol, cegavam.
Com os ensinamentos de Beccaria, que rapidamente se espalharam por toda a Europa, começou a se exigir inquéritos, júris, acusações e defesas. A justiça, com seus juízes, começou a ver os criminosos com olhos mais humanos. Isto já era efeito das ideias iluministas do século XVIII. Pois, os iluministas têm uma visão otimista do homem. Ensinam que o homem, por natureza, tende para o bem, e ele deve ser considerado inocente enquanto não se apresentarem provas em contrário. Quando alguém age delituosamente é necessário analisar as causas deste desvio de sua natureza. E as penas já não deveriam visar simplesmente uma vingança, mas reconduzir o ser humano ao caminho do bem. Esta era a visão dos filósofos e juristas iluministas.
Mas, nem todos os criminalistas assumiram este otimismo antropológico, e, principalmente os criminalistas positivistas do séc. XIX, chegaram a outras conclusões. Alguns conterrâneos de Beccaria desenvolveram uma sociologia criminal prática, positivista, que se considerava científica. Segundo estes criminalistas, existem certos criminosos irrecuperáveis. Até em seu aspecto exterior seria possível ver a sua propensão para o crime. Estes já estariam predestinados ao crime por nascimento. Hoje diríamos, nascem com “o gen do crime”. Depois do cumprimento de sua pena, voltariam a praticar os mesmos delitos.
Entre estes criminalistas encontramos Cesare Lombroso (1835-1909), com seu livro “O Homem Delinquente” ((1876); Raffaele Garofalo (1851-1934), com seu livro sobre “O Critério positivo da Criminalidade”(1878); Enrico Ferri (1856-1929), com seu livro sobre a “Negação do livre Arbítrio e Responsabilidade” ( 1878)), e “Sociologia Criminal” ( 1880). Estes criminalistas italianos, do positivismo jurídico, em sua maioria eram a favor da pena de morte.
Enrico Ferri, especialmente, em sua “Sociologia Criminal”, defende a tese de que existem criminosos de diferentes categorias. Segundo ele, existem criminosos, que não tem cura. Estes delinquentes considerariam sua prisão como acidente de trabalho. Entrariam na cadeia com o sentimento de que lá vão conviver com companheiros de profissão, e durante algum tempo poderiam viver às custas do Estado. Quando soltos, voltariam a praticar os mesmos crimes.
Em seu Projeto para o Código Penal Italiano, Ferri dividiu os delinquentes em diversas categorias: 1. delinquentes natos, que praticam seus crimes por instinto, ou por tendência congênita; 2. delinquentes loucos, que se tornam criminosos por atrofia moral, ou enfermidade mental; 3. delinquentes habituais – estes Ferri subdividiu em quatro categorias: a) Delinquentes habituais por tendência congênita, que geralmente praticam crimes de sangue, e são violentos por motivos banais; b) delinquentes que habitualmente praticam crimes leves; são delinquentes que não gostam de trabalhar, mas precisam sobreviver; c) delinquentes por hábito adquirido, muitas vezes por terem tido uma infância moralmente abandonada, sem o devido cuidado dos pais e uma educação deficiente; d) delinquentes profissionais, como os falsários, ladrões, estelionatários... 4. Delinquentes ocasionais: o ambiente os leva ao crime. Para estes vale o dito: “a ocasião faz o ladrão”; 5. Delinquentes passionais: são os criminosos movidos ao crime por paixões: honra, amor, ciúme, ódio, afeto familiar ou político-social.
Esta proposta de Ferri, da divisão dos delinquentes em categorias, com certeza foi um passo importante na criminalística. É polêmica, pois a muitos repugna admitir que existam pessoas que nascem destinadas ao crime, como se possuíssem um “gen do crime”. Mas Ferri tem razão quando mostra que existem criminosos com índoles e motivações diversas. O que leva necessariamente a uma qualificação dos crimes em leves, graves, hediondos, etc. E esta realidade também exige dos juízes uma dosimetria das penas. Os juízes serão desumanos se jogarem os diversos delinquentes, sem consideração, nas mesmas cadeias, misturando as diversas categorias de criminosos. Dos quais alguns seriam irrecuperáveis, outros cometeram crimes hediondos, junto com os que cometeram delitos leves. Uma justiça que assim mistura os apenados, deve ser considerada desumana, bárbara e cruel. De cadeias assim constituídas não sairão presos ressocializados e cidadãos honestos.
Os juízes, para serem justos, humanos e éticos, antes de pronunciarem suas sentenças, deveriam solicitar a outros profissionais pareceres sobre os delinquentes: psicólogos, sociólogos, antropólogos, agentes de saúde, economistas e outros criminalistas. Somente assim poderiam chegar a uma dosimetria penal adequada. Mas que juízes (especialmente no Brasil) se preocupam com isto? Muitos juízes nos tempos atuais, e entre nós, agem mais como carrascos do que como promotores de uma justiça humanitariamente civilizada. Dali a necessidade de protestarmos e lutarmos também por uma justiça mais justa em nosso país.
Inácio Strieder é professor de filosofia - Recife - PE.