A onda de protestos (um antecedente histórico e algumas considerações)
A revolta do Vintém.
Em fins de 1879 e, portanto, dez anos antes do golpe militar que inaugurou a República, teve lugar no Rio de Janeiro, então capital do Império, a eclosão de um movimento de feição popular. Esse movimento entrou para a História do Brasil com o nome de Revolta do Vintém.
Os manifestantes reivindicavam a redução do preço da passagem no transporte que então era feito em bondes de tração animal e cuja majoração fora anunciada.
No dia primeiro de janeiro, data em que o aumento passaria a vigorar, um grande número de populares ocupou o Largo de São Francisco, local onde se davam as partidas e chegadas dos bondes.
A presença intimidadora da autoridade policial recrudesceu os ânimos e os revoltosos começaram a ferir as mulas e a agredir os condutores dos bondes.
O exército foi convocado para ajudar a polícia a conter os manifestantes, dispersando-os ao trágico custo de inúmeros feridos e cerca de uma dezena de mortos.
Embora completamente desarticulado nos dias que se seguiram, o movimento acabou conseguindo duas proezas: fez com que as autoridades recuassem do pretendido reajuste, e sinalizou a direção em que ocorreriam as mudanças econômicas, sociais e políticas nos últimos anos do Segundo Império.
A onda de protestos.
Meados de 2013. Faz trinta anos que o povo brasileiro foi às ruas pedir “Diretas Já”. E vinte e um anos que as ruas do país foram invadidas aos gritos de “Fora Collor”.
As ruas, ao que parece, vão reviver a efervescência da presença popular. Não se sabe ao certo como isso começou, e sabe-se menos ainda como vai terminar.
Todos concordam que cidadania não quer dizer apenas poder votar, ainda que recordemos todos que esse direito foi recuperado a duras penas, de forma lenta e gradual, ao final de um longo período de ditadura militar.
Sabe-se também que para que se exerça a cidadania real há várias formas de participação política: grêmios estudantis, diretórios acadêmicos, sindicatos, associações de bairro, entidades de classe, Partidos Políticos, ONGs e um sem número de outras formas democráticas. Bem comportadas, todas elas formas socialmente aceitas e politicamente corretas.
Mas hoje vivemos um tempo de mudanças significativas; há uma evidente ‘crise de paradigmas’ e não dispomos de modelos prontos para copiar. E este é, talvez, o maior desafio que teremos que enfrentar: a construção de novos parâmetros para balizar a vida democrática, por que a sociedade já não se sente representada pelos políticos.
Cidadania e cidadão provêem da mesma raiz que cidade e, curiosamente, de modo inverso à globalização da economia que não tem mais pátria e muito menos cidade, hoje o poder político é eminentemente local, municipal. Por isso mesmo o exercício da cidadania tem que se dar principalmente na cidade. Mas estamos em meio a uma crise de participação política, de representatividade política.
Quando se fala em política, a reação das pessoas ou é de apatia (‘deixa prá lá’, ‘não vale a pena’, ’nada vai mudar’) ou é de revolta (‘são todos corruptos’, ‘nenhum presta’, ‘só querem se dar bem’) ou é de simples rejeição (‘não voto mais em ninguém, anulo meu voto’).
As pessoas – sim, porque não são só estudantes que foram às ruas – estão decepcionadas com os políticos e não se consideram mais representadas por eles.
Há cartazes contra a grande mídia que determina a pauta e a agenda daquilo que quer que saibamos e dos modelos que nos quer ver reproduzir, exercendo com esse expediente uma dominação desonrosa sobre a cidadania, asfixiando-a e reprimindo-a.
Há faixas e cartazes que contemplam as mais variadas aspirações; dos tradicionais reclamos por segurança, saúde, educação aos favoráveis ao aborto e à maconha. E há até alguns cartazes que fazem referência ao preço das passagens.
Obviamente o custo das passagens foi apenas ‘a gota d’água’ que fez transbordar a insatisfação generalizada dos cidadãos com ‘tudo que está aí’.
Isso, a despeito de um ou outro ‘idiota da objetividade’ – como diria Nelson Rodrigues – continuar vendo por esse ângulo míope e com a característica estreiteza de profissionais anacrônicos ou anacrônicos profissionais.
Na verdade, sabe-se o que não se quer, mas não o que realmente se deseja. É isso que parece emergir como a voz das ruas.
Os valores que nos foram impostos pela hegemonia capitalista estão centrados no ter e não no ser. Estamos engolfados nessa permanente busca consumista de possuir, adquirir, acumular.
Nosso tempo é o ‘pós-moderno’, vivemos a era da informação, a revolução digital; nossos hábitos e costumes mudaram num ritmo vertiginoso nesses últimos anos.
Os meios de comunicação ganharam força extraordinária, a tecnologia, a publicidade, a explosão de sites, blogs e do Facebook alteraram completamente nosso modo de vida.
E os desafios que o futuro nos reserva serão imensos, de difícil prognóstico e exigirão novos desenhos estruturais e diferentes pressupostos de sustentabilidade.
Por falar em sustentabilidade – essa palavra tão na moda – até a forma de relacionamento do homem com a natureza mudou.
Após centenas e centenas de anos como insaciáveis predadores dos recursos naturais do planeta, precisaremos encontrar soluções para os mais diversos problemas que vão desde a escassez da água potável até a destinação do lixo que continuamos a produzir em quantidade exponencial.
O consumismo exacerbado preconiza para todos o mesmo nível de consumo do cidadão norte americano, mas alguém já disse que se isso fosse hipoteticamente possível, precisaríamos de cinco planetas como este só para jogarmos o lixo.
Eric Hobsbawn escreveu, em “Era dos Extremos” (1995), que a humanidade evoluiu mais nos últimos 50 anos do que desde a idade da pedra. Claro que ele está se referindo à evolução tecnológica, mas a pergunta que fica é se houve em paralelo algum avanço moral ou ético na segunda metade do século XX.
É o próprio Hobsbawn, em entrevista ao jornalista italiano Antonio Polito em “O novo século” (1999), quem afirma que ‘se os homens não cultivam o ideal de um mundo melhor, eles perdem algo. Se o único ideal dos homens é a busca de felicidade pessoal, por meio do acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída’.
Voltemos então às manifestações que estão em curso.
É possível que essa revolta “contra tudo que está aí” e ao mesmo tempo contra nada objetivamente, tenha sim sua razão de ser.
Se, de fato, a massa de manifestantes não sabe exatamente o que quer, por certo sabe bem o que não quer.
E não quer mais sentir-se enganada e roubada pelos três poderes da República.
A revolta do Vintém.
Em fins de 1879 e, portanto, dez anos antes do golpe militar que inaugurou a República, teve lugar no Rio de Janeiro, então capital do Império, a eclosão de um movimento de feição popular. Esse movimento entrou para a História do Brasil com o nome de Revolta do Vintém.
Os manifestantes reivindicavam a redução do preço da passagem no transporte que então era feito em bondes de tração animal e cuja majoração fora anunciada.
No dia primeiro de janeiro, data em que o aumento passaria a vigorar, um grande número de populares ocupou o Largo de São Francisco, local onde se davam as partidas e chegadas dos bondes.
A presença intimidadora da autoridade policial recrudesceu os ânimos e os revoltosos começaram a ferir as mulas e a agredir os condutores dos bondes.
O exército foi convocado para ajudar a polícia a conter os manifestantes, dispersando-os ao trágico custo de inúmeros feridos e cerca de uma dezena de mortos.
Embora completamente desarticulado nos dias que se seguiram, o movimento acabou conseguindo duas proezas: fez com que as autoridades recuassem do pretendido reajuste, e sinalizou a direção em que ocorreriam as mudanças econômicas, sociais e políticas nos últimos anos do Segundo Império.
A onda de protestos.
Meados de 2013. Faz trinta anos que o povo brasileiro foi às ruas pedir “Diretas Já”. E vinte e um anos que as ruas do país foram invadidas aos gritos de “Fora Collor”.
As ruas, ao que parece, vão reviver a efervescência da presença popular. Não se sabe ao certo como isso começou, e sabe-se menos ainda como vai terminar.
Todos concordam que cidadania não quer dizer apenas poder votar, ainda que recordemos todos que esse direito foi recuperado a duras penas, de forma lenta e gradual, ao final de um longo período de ditadura militar.
Sabe-se também que para que se exerça a cidadania real há várias formas de participação política: grêmios estudantis, diretórios acadêmicos, sindicatos, associações de bairro, entidades de classe, Partidos Políticos, ONGs e um sem número de outras formas democráticas. Bem comportadas, todas elas formas socialmente aceitas e politicamente corretas.
Mas hoje vivemos um tempo de mudanças significativas; há uma evidente ‘crise de paradigmas’ e não dispomos de modelos prontos para copiar. E este é, talvez, o maior desafio que teremos que enfrentar: a construção de novos parâmetros para balizar a vida democrática, por que a sociedade já não se sente representada pelos políticos.
Cidadania e cidadão provêem da mesma raiz que cidade e, curiosamente, de modo inverso à globalização da economia que não tem mais pátria e muito menos cidade, hoje o poder político é eminentemente local, municipal. Por isso mesmo o exercício da cidadania tem que se dar principalmente na cidade. Mas estamos em meio a uma crise de participação política, de representatividade política.
Quando se fala em política, a reação das pessoas ou é de apatia (‘deixa prá lá’, ‘não vale a pena’, ’nada vai mudar’) ou é de revolta (‘são todos corruptos’, ‘nenhum presta’, ‘só querem se dar bem’) ou é de simples rejeição (‘não voto mais em ninguém, anulo meu voto’).
As pessoas – sim, porque não são só estudantes que foram às ruas – estão decepcionadas com os políticos e não se consideram mais representadas por eles.
Há cartazes contra a grande mídia que determina a pauta e a agenda daquilo que quer que saibamos e dos modelos que nos quer ver reproduzir, exercendo com esse expediente uma dominação desonrosa sobre a cidadania, asfixiando-a e reprimindo-a.
Há faixas e cartazes que contemplam as mais variadas aspirações; dos tradicionais reclamos por segurança, saúde, educação aos favoráveis ao aborto e à maconha. E há até alguns cartazes que fazem referência ao preço das passagens.
Obviamente o custo das passagens foi apenas ‘a gota d’água’ que fez transbordar a insatisfação generalizada dos cidadãos com ‘tudo que está aí’.
Isso, a despeito de um ou outro ‘idiota da objetividade’ – como diria Nelson Rodrigues – continuar vendo por esse ângulo míope e com a característica estreiteza de profissionais anacrônicos ou anacrônicos profissionais.
Na verdade, sabe-se o que não se quer, mas não o que realmente se deseja. É isso que parece emergir como a voz das ruas.
Os valores que nos foram impostos pela hegemonia capitalista estão centrados no ter e não no ser. Estamos engolfados nessa permanente busca consumista de possuir, adquirir, acumular.
Nosso tempo é o ‘pós-moderno’, vivemos a era da informação, a revolução digital; nossos hábitos e costumes mudaram num ritmo vertiginoso nesses últimos anos.
Os meios de comunicação ganharam força extraordinária, a tecnologia, a publicidade, a explosão de sites, blogs e do Facebook alteraram completamente nosso modo de vida.
E os desafios que o futuro nos reserva serão imensos, de difícil prognóstico e exigirão novos desenhos estruturais e diferentes pressupostos de sustentabilidade.
Por falar em sustentabilidade – essa palavra tão na moda – até a forma de relacionamento do homem com a natureza mudou.
Após centenas e centenas de anos como insaciáveis predadores dos recursos naturais do planeta, precisaremos encontrar soluções para os mais diversos problemas que vão desde a escassez da água potável até a destinação do lixo que continuamos a produzir em quantidade exponencial.
O consumismo exacerbado preconiza para todos o mesmo nível de consumo do cidadão norte americano, mas alguém já disse que se isso fosse hipoteticamente possível, precisaríamos de cinco planetas como este só para jogarmos o lixo.
Eric Hobsbawn escreveu, em “Era dos Extremos” (1995), que a humanidade evoluiu mais nos últimos 50 anos do que desde a idade da pedra. Claro que ele está se referindo à evolução tecnológica, mas a pergunta que fica é se houve em paralelo algum avanço moral ou ético na segunda metade do século XX.
É o próprio Hobsbawn, em entrevista ao jornalista italiano Antonio Polito em “O novo século” (1999), quem afirma que ‘se os homens não cultivam o ideal de um mundo melhor, eles perdem algo. Se o único ideal dos homens é a busca de felicidade pessoal, por meio do acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída’.
Voltemos então às manifestações que estão em curso.
É possível que essa revolta “contra tudo que está aí” e ao mesmo tempo contra nada objetivamente, tenha sim sua razão de ser.
Se, de fato, a massa de manifestantes não sabe exatamente o que quer, por certo sabe bem o que não quer.
E não quer mais sentir-se enganada e roubada pelos três poderes da República.