O MAL NA FILOSOFIA EXISTENCIAL DE KIERKEGAARD: Por ocasião do Bicentenário (05.05.1813) de Sören Kierkegaard
1. Introdução
O mal é uma categoria ética. Mas as dimensões desta questão ultrapassam o horizonte ético-filosófico. Teólogos, psicólogos, sociólogos e antropólogos, e ultimamente também biólogos, tentam esclarecer o fato moral do mal.
Kierkegaard, como pensador transversal, propôs uma solução diferente da tradicional. A sua orientação é pragmática. Não recorre a teorias abstratas. Procura responder às questões existenciais, partindo da vida concreta.
No prefácio do “Conceito de Angústia”(1844), Vigilius Haufniensis, um pseudônimo de Kierkegaard, aconselha, a quem deseja escrever um livro, a pesquisar primeiramente o que outros já escreveram sobre o assunto. Isto evitaria que o autor enveredasse por uma fantasia demasiadamente audaciosa. Pois um livro se deve escrever com a mesma espontaneidade como um pássaro executa sua melodia.
Tomando em consideração este conselho de Kierkegaard, é conveniente, ao abordar a compreensão do mal em Kierkegaard, que se verifique como outros filósofos, antes e depois dele, tentaram compreender o fenômeno do mal.
Nos tempos atuais se fala num “eixo do mal” como a grande ameaça para a paz mundial e a civilização ocidental. As últimas guerras foram qualificadas como batalhas do bem contra o mal.
Mas, o que se deve considerar como um mal? Os múltiplos aspectos do mal tornam difícil uma definição clara e distinta. Talvez, de uma forma simples se poderia qualificar a maldade como uma ação praticada consciente e voluntariamente, causando prejuízo a outros. Neste sentido, a maldade de uma ação somente existe, quando ela for praticada livre e voluntariamente. Isto levanta a pergunta: e o que se constitui, de fato, em prejuízo para os outros?
Esta é uma pergunta que sugere múltiplas respostas. Novamente, de forma simples, se poderia dizer: má é toda ação que interfere negativamente na liberdade de alguém, impedindo ou dificultando que o indivíduo realize o sentido e os objetivos de sua existência.
Historicamente se constata que a questão do mal convive com a humanidade desde as suas origens. No livro bíblico do Gênesis, o grande pecado do primeiro homem foi a sua busca pelo conhecimento do bem e do mal. Na filosofia, desde os seus primórdios, se discute sobre a questão do mal. E as perguntas fundamentais que alimentam este debate são: 1. Por que o homem pratica o mal? 2. Como um Deus bom e onisciente permite o mal?
Em 1710 o filósofo Leibniz publica seu livro “Teodiceia: A Justificação de Deus perante os males do mundo, a liberdade humana e a origem do mal”. Leibniz distingue três formas de maldade: o mal metafísico; o mal físico; e o mal moral. Para Leibniz, Deus sempre deseja o melhor, e criou o melhor dos mundos possíveis. Por isto não se pode atribuir a Deus os males. O mal é a ausência do bem, consequência da imperfeição do mundo e da liberdade humana. A perfeição absoluta e a liberdade perfeita somente cabem a Deus. Deus não poderia ter criado um mundo perfeito, e atribuir às suas criaturas uma liberdade absoluta. Se assim acontecesse, o mundo e as outras criaturas seriam outros deuses. Portanto, a imperfeição da criação é um mal metafísico, necessário.
O filósofo Kant, antes de Kierkegaard, discute a questão do mal primordialmente ao nível do antropológico e ético, e fala da “radicalidade do mal na natureza humana”. Para ele, o mal moral é um mal de raiz. Em sua própria natureza, o homem possui uma tendência para o mal. Mas isto não significa, para Kant, que o homem esteja determinado para praticar o mal. Pois com o determinismo desapareceria a responsabilidade, e o mal se tornaria moralmente indiferente, e no nível religioso já não se poderia falar em pecado.
A explicação kantiana de uma “natureza humana, tendente ao mal”, não agradou aos filósofos iluministas da época. Os iluministas são otimistas quando se trata do homem, e consideram a tendência ao bem como antropologicamente originária. Por isto, o sistema hegeliano lhes pareceu mais simpático para a compreensão do problema do mal. Hegel dilui o mal no processo civilizatório da humanidade e da evolução do mundo. O mal se manifesta como um momento da evolução do Espírito Absoluto.
Ainda no século XIX, o filósofo Schelling apresentou um novo enfoque para a compreensão do problema do mal. Abandonou as explicações naturalísticas e metafísicas. No sistema de Schelling o mal é considerado, simplesmente, como um contraponto do bem. Apenas duas questões se colocam para compreender o mal: se o homem estiver determinado a praticar o mal, ele não poderá ser considerado culpado; se admitirmos a liberdade do homem, o mal deve ser considerado irracional, pois sua prática fere a liberdade. O homem somente é livre quando pratica o bem; pratica o mal dominado pelo vício, pela corrupção, pela perversão de sua natureza racional e emocional. Esta ideia, sem dúvida, é agostiniana.
Na realidade dos instintos e das necessidades corporais não há liberdade absoluta. Desta forma, o “homem livre” não necessariamente respeita a liberdade dos outros, pois sua liberdade, muitas vezes, está envolta por interesses irracionais. A categoria kantiana da liberdade absoluta somente é possível no nível da espiritualidade pura.
As considerações de Kierkegaard sobre o mal se enquadram na filosofia da prática do século XIX. Ele afirma a irracionalidade das transgressões individuais. Nesta irracionalidade da prática do mal sempre há implicações psicológicas e filosóficas. Desta forma, para Kierkegaard, não há explicação racional para o mal, pois o mal é essencialmente irracional. Com este pressuposto, Kierkegaard procura identificar uma forma de vida em que a liberdade absoluta fosse possível ao homem. Uma forma de vida em que o homem não estivesse mais dominado pelas necessidades de sua natureza corporal.
Também Kierkegaard sabe que, de forma plena, isto não é possível no estágio presente da existência humana, pois, por mais que o indivíduo se oriente responsavelmente pelas dimensões espirituais, a sua responsabilidade sempre se confrontará com suas potencialidades pecadoras. A prática do mal permanecerá uma potencialidade existencial, enquanto o homem se encontrar na condição de síntese entre o finito e o infinito, entre o tempo e a eternidade, entre a liberdade e a necessidade.
Para Hanna Arendt, o mal radical não existe. O fenômeno do mal é uma realidade superficial. É semelhante a um fungo que se espalha rapidamente, por falta de consciência crítica dos homens. Se as condições em que o “fungo”” do mal se desenvolve fossem modificadas, o mal não se instalaria na sociedade.
2. O Mal em Kierkegaard
2.1 – Kierkegaard: um pensador existencial
Na filosofia acadêmica é usual lembrar que os filósofos não possuem biografia, mas ideias. Neste sentido, o filósofo é alguém sem pátria e sem tempo. Não possui pátria, pois sua referência é universal; geograficamente não está situado. Nisto Kierkegaard é uma exceção. Pois, sua biografia, seu tempo histórico e sua situação geográfica são fundamentais para entender seu pensamento.
Kierkegaard teve uma vida curta, de apenas 42 anos. Não lhe faltaram polêmicas e controvérsias. Mas, sua vida foi impressionantemente produtiva. Sua obra completa chega a 70 livros.
Os seus escritos são uma mistura de filosofia, teologia, psicologia, antropologia, de literatura e poesia. Em seus escritos revela-se um pensador e escritor com diversificadas facetas.
a) Vida
Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855) nasceu em 5 de maio de 1813 em Kopenhagen, em um ano de bancarrota da Dinamarca. O casal Kierkegaard tinha 7 filhos. Entre eles, Sören era o mais novo. Mesmo com a situação econômica difícil da Dinamarca, Kierkegaard cresceu num ambiente de abundância, pois seu pai era um comerciante bem sucedido em Kopenhagen.
Kierkegaard foi criado num ambiente familiar rigorosamente pietista, de acordo com um ramo religioso da igreja luterana, na época a igreja oficial do Reino da Dinamarca. Esta educação religiosa se sedimentou profundamente em Kierkegaard. Mas, embora iniciasse seus estudos superiores no Curso de Teologia,em breve se distanciou desta vida religiosa muito rigorosa.
Durante seus estudos, era visto com frequência nos cafés e restaurantes de Kopenhagen, onde era conhecido por seu humor e vida boêmia. Embora muitos o admirassem neste ambiente boêmio, este estilo de vida não o satisfazia, como registrou em seu Diário de 1836. Em uma passagem deste Diário, diz: “Agora mesmo estive num ambiente onde fui o centro. As piadas fluíram de minha boca. Todos riam, me admiravam. Meu pensamento, no entanto, se distanciou na dimensão do raio da terra. Saí deste ambiente com a vontade de me suicidar com um tiro”.
Kierkegaard passava por períodos de melancolia, ou, como se diria hoje, sofria com depressão.
Cada vez mais Kierkegaard almejava por uma fé segura. Por isto, antes de seu pai falecer, em 1838, prometeu-lhe terminar seu curso de teologia. Cumprida a promessa, noivou em setembro de 1840 com Regine Olsen. Sem motivos claros, rompeu com este noivado um ano depois. Ao que parece, Kierkegaard não se considerava apto para assumir as responsabilidades de um casamento. Mas, durante toda a sua vida Kierkegaard sonhava com o amor por Regine. E isto, de certa forma, se transformou num tormento.
Em 1841, Kierkegaard finalizou uma posgraduação, com um trabalho sobre a “Ironia em Sócrates”. Após isto, viajou para Berlim, a fim de se familiarizar com a filosofia hegeliana. Em Berlim frequentou as preleções de Schelling. Mas Schelling o decepcionou profundamente. Por isto, após apenas 5 meses e meio, voltou a Kopenhagen.
Em Kopenhagen, Kierkegaard se entregou a uma fecunda produção literária e filosófica. Em apenas 12 anos, além de diversos volumes de seu Diário, publicou mais de 20 livros. Mas, apenas seu primeiro livro: “Ou/Ou”(Aut-Aut) de 1843, com o pseudônimo de Victor Eremita, foi recebido entusiasticamente. Os outros conquistaram poucos leitores. As crônicas registram que, em sua época, Kierkegaard era mais conhecido em Kopenhagen por seus trajes exóticos, do que por suas ideias. Nos ambientes mais letrados provocava risos.
O jornal satírico o “Corsário”, de Kopenhagen, se tornou seu grande detrator. Este jornal publicou uma série de textos e caricaturas sobre Kierkegaard, o que fez com que, também popularmente, fosse rejeitado. Dizem até que as babás, quando repreendiam as crianças por falta de cuidados com suas roupas, diziam que pareciam com Sören Kierkegaard. Contudo, mesmo com esta fama, Kierkegaard sempre manteve um círculo restrito de fiéis leitores. As sua obra completa chega a 70 volumes.
Com a publicação de seus livros foi sumindo a herança que recebera de seu pai. Para manter-se, Kierkegaard pensou, então, em abandonar Kopenhagen e assumir um posto de pastor numa paróquia no interior da Dinamarca. Mas a sua rejeição da igreja oficial do Estado, que em suas críticas considerava uma aberração do cristianismo, o afastaram desta decisão.
A sua situação financeira se tornou tão precária que, em 1855, com a publicação do 10º número de sua revista “O Momento”, faliu. Era necessário encontrar uma solução. Neste mesmo ano, porém, Kierkegaard sofreu uma queda na rua. Atendido, faleceu em 11 de novembro de 1855 num hospital em Kopenhagen, com apenas 42 anos de idade.
Para uma adequada interpretação de Kierkegaard, é indispensável conhecer os fatos mais significativos de sua vida. Muitas referências, em sua obra, estão intimamente relacionadas com sua vida.
Especial atenção merecem seu profundo relacionamento com o pai, a ânsia na busca de uma fé segura, e sua relação trágica com Regine Olsen. Além destes, outros fatos foram marcantes na biografia de Kierkegaard. Em poucos anos, de 1824 a inícios dos anos de 1830, faleceram sua mãe e cinco de seus irmãos. Atormentava-o a ideia de que, por castigo de Deus, ninguém da família sobreviveria ao pai, pois o pai, na juventude, embriagado, havia amaldiçoado a Deus.
Com certeza, a filosofia existencial kierkegaardiana da angústia, do desespero, do temor e tremor tem raízes em suas atribuladas experiências de vida. Estas experiências também estão na base de sua angustiada busca por uma fé segura, uma vida cristã autêntica e responsável.
b) Os pressupostos e os fundamentos da filosofia de Kierkegaard.
Kierkegaard se entendia mais como crítico da filosofia do que como filósofo. Mais do que outros filósofos, ele deve ser interpretado como uma manifestação complementar da situação histórica de seu tempo e de seu ambiente. O principal aspecto de seu programa filosófico é o fato de ter trazido, novamente, para o centro das preocupações filosóficas e teológicas o Indivíduo. Contrariamente ao que ensinava o idealismo alemão, que submergia o indivíduo na dinâmica evolutiva da humanidade.
Para Kierkegaard a liberdade e a responsabilidade ética do agir humano cabem aos indivíduos, e não a um ser humano abstrato e genérico. Isto contrariava o idealismo alemão, para quem o agir diário do indivíduo parecia ter perdido totalmente sua importância.
No sistema hegeliano, a liberdade e a práxis do indivíduo adquirem sentido somente no horizonte da humanidade em geral. Kierkegaard detestava qualquer sistema, em que a importância do indivíduo era relativizada.
Embora também Kierkegaard, de certa forma, estivesse fascinado por Hegel, pareceu-lhe um contrassenso retirar do indivíduo sua responsabilidade, submergindo-o no universal. Mesmo assim, não há dúvida, a filosofia existencial de Kierkegaard deve muito ao idealismo hegeliano. Seus escritos são dialéticos. Recorre a conceitos do idealismo, quando descreve o homem como uma síntese de corpo e alma.
Distancia-se, no entanto, do idealismo quando afirma como núcleo de sua filosofia a existência do indivíduo. Em seu livro “Enfermidade Mortal”(1849) define o homem como sendo “espírito”, expressão tipicamente idealista. Mas, na definição do que entende por “espírito”, distancia-se novamente da conceituação idealística.
Para Kierkegaard, o espírito humano é o “eu”(Selbst) individual. Este “eu” não é nem o corpo, nem a alma, mas a síntese da relação de “si para consigo”, que se realiza na dualidade de síntese entre corpo e alma, entre finito e infinito, entre tempo e eternidade, entre a liberdade e necessidade. O homem, em sua existência concreta, vive na tensão destas relações, e constantemente é solicitado a fazer escolhas. Para que o verdadeiro eu se constitua, é necessário assumir responsavelmente estas relações.
Para Kierkegaard o indivíduo não é um sujeito com essência estática, mas está constantemente solicitado a constituir, de forma nova, suas relações, nas circunstâncias de seu existir. No exercício livre da composição destas relações do eu-para-com-seu-eu o indivíduo chegará ao seu verdadeiro “eu” (Selbst). A partir desta compreensão, se tornou característica na filosofia existencialista a afirmação: “a existência precede a essência”.
A constituição deste “eu” não se concretizará apenas com a reflexão do indivíduo sobre si mesmo, ou com a posse da autoconsciência. Este “eu” é o resultado de uma atitude relacional prática com o mundo, com os outros seres humanos e para com Deus. Portanto, o verdadeiro “eu” é o resultado de uma praxis ativa na existência concreta, com constantes decisões e escolhas. O indivíduo realizará a sua história existencial pessoal, com responsabilidade total, no estabelecimento livre de relações.
Com estas considerações, fica claro que, na compreensão antropológica de Kierkegaard, o ponto central da existência é a livre autodeterminação do indivíduo. Neste modelo, ser e dever se fundem numa unidade, que se concretizará com o indivíduo mostrando e realizando, em seu agir existencial, o nível de sua dimensão humana. Esta dimensão humana, para Kierkegaard é a imagem e semelhança do homem com Deus. Esforçar-se por constituir esta dimensão é condição para que o indivíduo realize o sentido de sua existência.
Com esta caracterização antropológica manifesta-se que as inquietações existenciais de Kierkegaard são de origem teológica. Pois a pergunta orignária angustiante, que perpassa toda a obra de Kierkegaard é: “ Como me posso tornar um verdadeiro cristão?”.
Por isto, não são poucos os críticos de Kierkegaard que gostariam de classificá-lo entre os teólogos, e não entre os filósofos. Inclusive, parte significativa de sua obra é, de fato, uma crítica à cristandade de sua época, especialmente na Dinamarca, onde a igreja luterana era a igreja oficial do Estado.
Para Kierkegaard era uma aberração que os Pastores fossem funcionários do Governo, recebendo salários deste Governo; acomodando-se às exigências e conveniências políticas; orientando-se por uma filosofia idealista/racionalista, que os distanciava da pregação do verdadeiro conteúdo da fé cristã... O fruto de tal igreja resultava em cristãos que não viviam um verdadeiro cristianismo, pronunciando, muitas vezes, o nome de Deus apenas quando amaldiçoavam; um cristianismo de fachada, de aparências, com rituais formais; o povo submisso a normas externas da igreja; a dogmas, sem incorporá-los efetivamente em suas existências individuais. Esta igreja de Estado formava uma cristandade, sem cristianismo.
Com estas críticas à cristandade de sua época, Kierkegaard queria que se voltasse novamente ao verdadeiro cristianismo, pois a maioria, segundo ele, se esquecera do que era “ser verdadeiramente cristão”.
Para Kierkegaard, o cristianismo não é um conjunto doutrinário intelectual, nem um conjunto de ritos, mas uma forma prática de vida. Por isto, é lá onde se vive, no dia-a-dia, que se aprende as obrigações que o cristianismo exige. Para um retorno ao cristianismo originário, deveria-se superar o hedonismo da época, tornar Jesus Cristo presente na vida, imitando-o, e assumindo a forma existencial de vida que Cristo viveu.
A partir desta teologia de vida, Kierkegaard analisa e critica as possibilidades existenciais, para estabelecer uma existência de acordo com as exigências do verdadeiro cristianismo.
Em suas considerações, propõe as mais diversas formas de existência, questionando-as depois. Não se propõe a transmitir conhecimentos, mas a motivar cada indivíduo a escolher uma forma de vida pessoal, com correspondente práxis existencial subjetiva, com plena responsabilidade por seus atos.
Segundo Kierkegaard, ninguém tem o direito de impor a outra pessoa uma forma existencial. O projeto existencial é estritamente subjetivo e pessoal, com opção livre de escolha. O professor não tem a função de ensinar e impor conhecimentos, mas é apenas alguém que estimula o estudante a refletir pessoalmente, a buscar o conhecimento, originando seu autonascimento existencial.
Esta proposta educacional de Kierkegaard, sem dúvida, inspira-se no modelo da maiêutica socrática. Como já mencionado, acima, o seu trabalho de conclusão de posgraduação em Kopenhagen versou sobre a “Ironia Socrática”. Ele mesmo já foi denominado de “Sócrates nórdico”. Constata-se, inclusive, que este modelo socrático perpassa toda a sua obra.
Muitos críticos, inclusive, entendem o múltiplo uso de pseudônimos por Kierkegaard como consequência desta presença de Sócrates em sua metodologia. Os pseudônimos poderiam significar que ele, Sören Kierkegaard, não estava ensinando formas de vida. Apenas as analisava para que cada indivíduo escolhesse responsavelmente os caminhos de sua própria existência.
Kierkegaard nunca se qualificou como professor, como filósofo ou teólogo, apenas queria ser um “escritor religioso”. Por isto, de fato, os seus pseudônimos podem ser considerados como “máscaras socráticas”.
Diversas das formas de vida que analisa, ele as retira de sua própria experiência existencial. Ele mesmo vivera de acordo com vários estágios existenciais. Não quer que alguém o imite, mas que cada qual escolha responsavelente sua forma de vida, que deverá ser totalmente pessoal.
Esta perspectiva de vida individual, fez com que seus escritos repercutissem na psicanálise, pois são praticamente uma espécie de terapia. Querem contribuir para que cada indivíduo se encontre a si mesmo, assumindo plenamente a responsabilidade por sua existência.
2.2. – O mal em diversos estágios existenciais.
Toda a filosofia existencial de Kierkegaard se insere numa teoria de estágios. Segundo ele, existem três esferas existenciais: a estética, a ética e a religiosa. Todo indivíduo vive de acordo com uma destas esferas.
Não é indiferente em que estágio se viva. Cada estágio apresenta múltiplas facetas, que se articulam ao redor de um eixo de relacionamentos característicos em relação aos outros, ao meio ambiente, a Deus e para consigo mesmo. Nestes relacionamentos aparecerá se o indivíduo age bem ou mal. Dependerá da estrutura relacional se a práxis é boa ou má. Para cada estágio há critérios de avaliação do mal moral.
Vejamos que avaliações éticas são possíveis em relação ao agir, em cada um destes estágios.
a) Estágio estético: indiferença moral e busca de prazer.
Kierkegaard caracteriza os estágios estético e ético em sua primeira obra “Ou/Ou” (Aut-Aut). Falar em “estágio estético”, como forma existencial, de certa forma confunde, pois Kierkegaard não está caracterizando simplesmente o modo de vida dos artistas, embora busque alguns exemplos entre eles.
”Estético”, para ele, tem o sentido da palavra grega “aisthesis”, com a significação de “percepção sensorial”. Neste estágio, o indivíduo se orienta pelos sentidos, pelos instintos e pelas paixões. O viver estético é um viver hedonista.
No estágio estético o sentido do existir é simplesmente “aproveitar a vida”, sem preocupações morais. O lema é o epicurista: “”comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”.
No estágio estético o indivíduo está dominado pelos poderes cegos da natureza. Isto o impede de agir livremente. O que significa que suas ações não são morais, pois uma ação moral supõe a liberdade. E o homem dominado pelos instintos, pelas paixxões e pelos sentimentos não pode ser considerado livre. Não é que neste estágio não se faça escolhas, mas estas escolhas ou são inconscientes, ou dominadas por forças da natureza. Portanto, não são escolhas livres.
O “homem estético” vive aquém das categorias morais, age de forma aética. Suas ações não são imorais, mas moralmente indiferentes, pois carecem de consciência e vontade.
No estágio estético o indivíduo se deixa levar por poderes que ele mesmo não domina. Estes poderes podem estar ligados a objetos do mundo exterior, ou de seu mundo interior. O sujeito se deixa dominar pela busca, ou pelo desejo da posse de um objeto material ou de características pessoais. Empenha-se, por exemplo, por adquirir riquezas, beleza ou desenvolver seus talentos. No entanto, não se lembra que tudo isto é passageiro, não satisfazendo o objetivo último da vida humana.
No dia em que o indivíduo se conscientizar que estes bens não são duradouros, vai considerar sua vida um fracasso, o que o levará ao sentimento de desespero, de angústia e melancolia.
Como exemplo de uma existência no estágio estético, Kierkegaard cita o Imperador Nero, que usufruía de todas as condições para uma vida de prazer. Mesmo assim, sua existência resultou num fracasso total.
O “homem estético” vive de instante em instante. Sua vida se resume em detalhes que considera interessantes. Isto lhe proporciona momentos isolados de prazer, com espaços maiores de monotonia existencial. Com o tempo, mesmo o mais original “esteta” não encontrará mais novos prazeres. E então surge o desespero e a depressão.
O desespero se manifesta quando desparecem determinadas condições de viver de acordo com o hedonismo. A forma de vida estética é desesperadora em si mesma para o ser humano. Pois, o espírito humano não se satisfaz com uma existência de prazeres momentâneos e passageiros. Isto o leva à angústia e ao desespero.
A partir desta constatação, Kierkegaard não considera o desespero humano um beco sem saída. Pelo contrário, com o desespero cresce no indivíduo a aspiração por uma forma de vida superior. É neste momento que se oferece ao indivíduo a oportunidade de fazer opção por um novo estágio de vida: o Estágio Ético.
b) O estágio ético: moral e liberdade.
No estágio ético o indivíduo é livre. Mas não plenamente livre. Neste estágio ele encontra um conjunto de normas morais, de costumes, de leis, de hierarquias, de valores, de convenções segundo as quais é convidado a construir sua existência. É verdade, escolhe livremente viver em conformidade com este sistema. Um sistema, porém, não livremente constituído por ele. Contudo, observando tudo isto, o indivíduo poderá se sentir mais tranquilo, mais seguro, menos angustiado.
Assumindo um sistema de vida, o indivíduo se sente integrante do gênero humano, percebe-se cidadão de um Estado, membro de uma comunidade, de uma igreja, etc... Nada do que é humano lhe parecerá estranho. O Estado lhe dita as leis, a igreja lhe ensina como se relacionar com Deus. Neste ambiente se sente livre para escolher seus relacionamentos.
Apesar da segurança que o sistema lhe proporciona, o indivíduo, contudo, se perceberá frágil e se descobrirá falhando e pecando. Diante destas falhas nasce, em seu interior, a necessidade de arrependimento, a percepção de impotência, de inconstância, de impossibilidade para dar resposta a muitas perguntas existenciais em suas relações consigo mesmo, com os outros, com o meio ambiente e com Deus. A partir daí, o “homem ético” se intranquiliza, se desespera e angustia, suspirando por um outro estágio.
As respostas racionais não serão suficientes para tranquilizar seu espírito. Percebe que seu pecado não é racional, que a morte não é racional, que as guerras não são racionais, enfim, o mal, presente por toda parte, não é racional. O indivíduo encontra-se, então, diante de dois caminhos existenciais: retornar ao estágio estético, ou fazer a opção por um novo estágio superior: o estágio religioso.
c) O estágio religioso: Liberdade plena.
A opção pela forma de vida religiosa é uma exceção, nem todos chegam a fazer opção por esta forma de vida. A maioria permanece no estágio ético. O estágio religioso permite uma existência de plena liberdade, pois o indivíduo já não se deixará dominar pelas exigências instintivas, passionais ou sentimentais, nem assumirá apenas um sistema.
Não é que, neste estágio, não existam mais estas exigências, mas elas estarão emolduradas pela dimensão do espírito, que coordena a síntese entre corpo e alma, entre finito e infinito, entre liberdade e necessidade, entre temporal e eterno.
O indivíduo, no estágio religioso, estará para além das normas éticas, dos ritos e das convenções sociais e culturais, estabelecidas por sistemas racionais. Apenas se orientará pela fé. Esta fé o satisfará em relação a muitas perguntas existenciais. A fé lhe dará respostas para além da razão. Pois, os conteúdos revelados da fé informam seguramente sobre questões para as quais a razão não tem resposta. Por exemplo: qual é o sentido de nossas vidas, como surgiu o mundo, o homem possui uma alma imortal, Deus existe, Deus quer a salvação dos homens, por isto enviou seu filho Jesus Cristo, que morreu na cruz por nós, o homem que peca é perdoado quando se arrepende, por que a morte, o problema do mal?... Para todas estas questões a fé possui uma resposta. Os sistemas racionais não possuem respostas satisfatórias para estas questões existenciais, e produzem no “homem estético” e no “homem ético” a angústia e o desespero.
Fica claro que a escolha por uma existência de acordo com o estágio religioso, na visão de Kierkegaard, é uma opção por uma fé irracional. Não é que o homem religioso, segundo Kierkegaard, deva renunciar à razão. Mas, a opção pela fé é “um salto no escuro”, “crê-se porque é absurdo” (credo, quia absurdum). A fé, necessária existencialmente, não se sustenta racionalmente. De certa forma, Kierkegaard sugere assim um irracionalismo religioso. Um tal irracionalismo pode levar a situações perigosas, quando assumido fundamentalisticamente. O que não parece ter sido a intenção de Kierkegaard.
Para Kierkegaard, só se pode viver de forma plenamente humana, em plena liberdade no estágio religioso, quando se opta por uma relação primeira por Deus. Primeiro Deus, depois o próximo, o ambiente e a si mesmo. “Amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo”, conforme o mandamento de Jesus. A norma para a existência, fluirá dos ensinamentos bíblicos, que não são nem filosóficos, nem éticos, mas orientam o homem pelo princípio do amor, com temor e tremor.
Considerações finais:
Seria ingênuo pesquisar as ideias de um pensador apenas para tentar descobrir o que ele pensou. Kierkegaard não quer que simplesmente nos ocupemos com as ideias dos outros, mas aprendamos nós mesmos a pensar e a agir.
Kierkegaard continua menos conhecido no Brasil do que em outros países, também na América Latina. A Argentina, muito antes do Brasil, começou a ler Kierkegaard. Possui, inclusive, uma Biblioteca Kierkegaard, e diversos experts no pensamento deste filósofo.
No Brasil, Kierkegaard está conquistando leitores apenas há algumas décadas. Em tempos passados, poucos escritores o citavam. Entre eles Alceu Amoroso Lima. Poucos liam Kierkeggard. Os comentários sobre ele, geralmente, eram de segunda mão. Hoje, pode-se afirmar, já não é assim. Já há abundantes leitores e estudiosos das obras de Kierkegaard no Brasil. Isto está confirmado pelo número de dissertações de mestrado e teses de doutorado que, ultimamente, foram apresentadas nas universidades brasileiras.
Por iniciativa do Prof. Álvaro Montenegro Valls, da UNISINOS/São Leopoldo, já há algum tempo foi criada a “Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard” (SOBRESKI), com sede no sul do Brasil. Esta Sociedade tem como mote “Uma Sociedade ironicamente correta”. Isto, certamente, por referência a Kierkegaard, considerado o ”Sócrates nórdico”.
A filosofia de Kierkegaard apenas começou a ser valorizada, fora da Dinamarca, quase 50 anos depois de sua morte. Entretanto, sua influência foi múltipla. Na filosofia, é considerado o “Pai do Existencialismo”; está na base da posmodernidade; foi lido por filósofos crentes e descrentes, como Gabriel Marcel, Karl Jaspers, Mounier, Lévinas, Heidegger, Sartre, Simone de Beauvoir; por teólogos, como Paul Tillich, Karl Barth, Rudolf Bultmann; por psicanalistas, como Freud, Lacan, etc.
E o que do pensamento de Kierkegaard seria importante considerar, em vistas ao nosso ambiente cultural brasileiro?
1. O estudo de Kierkegaard nos revela que a biografia de cada um condiciona sua vida, seu pensamento e sua ação no decorrer da existência.
2. O ser humano é um ser individualizado. Como se vive, se pensa e o que se faz é responsabilidade individual.
3. O indivíduo não nasce com uma essência humana estática. O que faz com que alguém seja isto ou aquilo são suas experiências existenciais. As experiências de vida acontecem de acordo com o estágio existencial, ou forma de vida, em que a pessoa está situada. Os diversos estágios são: o estético, o ético e o religioso.
4. O ser humano é um indivíduo situado em um tempo e um ambiente. Neste tempo e neste ambiente, o indivíduo é levado a escolher livremente a forma de suas relações com os outros, com o mundo, com Deus e consigo mesmo. Perante os atos que pratica, na objetivação destas relações, o indivíduo é o único responsável.
5. Em sua vida, o indivíduo é, constantemente, solicitado a fazer novas escolhas. Neste processo dinâmico da vida ele constrói a sua existência, que precede, portanto, aquilo que ele deve ser como ser humano, isto é sua essência.
6. Ninguém está autorizado a impor a alguém uma forma de existência. O professor, o pastor apenas tem a função de propor formas de vida, e incentivar o estudante, ou qualquer pessoa, a escolher esta ou aquela proposta.
7. Exclusivamente o indivíduo é responsável pela forma de vida que escolheu. Por isto, seria inadmissível para Kierkegaard uma cultura de massas.
8. Em conclusão, o que se segue deste caminho existencial, proposto por Kierkegaard, é que cada indivíduo tem a total responsabilidade por seus atos, e pela forma de vida que leva: é o indivíduo que escolhe ser ladrão, ser homicida... ou ser homem de bem. O culpado é só ele, e não as circunstâncias, os outros, o diabo ou Deus.
(N.B.: Interessante, neste sentido, é que a justiça, ao menos a brasileira, quando julga, individualiza o réu e sua culpa. É o princípio da individualização das responsabilidades de Kierkegaard!).
9. A partir de quando começa a responsabilidade existencial, individual? A partir do momento em que o indivíduo manifestar liberdade e vontade próprias. Isto, independentemente de idade biológica. O mal e/ou o bem feito de um indivíduo se manifestarão através de sua ação, em circunstâncias com possibilidades de escolha livre e responsável. Isto pressupõe autoconsciência e capacidade de discernimento entre o bem e o mal. O mal, por isto, não se caracteriza por teorias ou doutrinas, mas pela ação concreta do indivíduo em sua opção existencial.
Aqui aparece a importância da educação e da cultura. Numa cultura que valoriza a “vida estética” do prazer, do hedonismo, do proveito pessoal, do usufruto da vida material, da injustiça, ou da fuga de si mesmo através de drogas, o que se caracteriza como mal? Em tais circunstâncias, provavelmente, não se desenvolverá no indivíduo uma autoconsciência sensibilizada frente ao crime. O que leva criminosos, adolescentes ou não, a debocharem frente ao sofrimento de suas vítimas. Praticam crueldades hediondas, e dão risada, até nas delegacias.
A grande questão é, qual é a eficiência de nosso sistema educacional? Além disto, que modelo de sociedade se incentiva no Brasil? Uma sociedade hedonista, do prazer, ou uma sociedade ética? Quais são as sugestões mais fortes em nossa mídia, na publicidade?
Concretamente, Kierkegaard constata que a maioria dos indivíduos, numa sociedade civilizada, opta pelo “estágio ético”, e nele permanece. Mas, para uma vida humanizada, mais plena, para Kierkegaard seria necessário almejar pelo “estágio religioso”. Para ele, somente neste estágio a existência humana poderia ser vivida com a maior dignidade possível.
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Anexos:
a) Pseuddônimos de Kierkegaard:
Victor Eremita, A, Juge William, Johannes de Silentio, Constantin Constantius, Jeune Homme, Vigilius Haufniensis, Nicolaus Notabene, Hilarius de Relieur, Johannes Climacus, Inter et Inter, H.H., Anti-Climacus...
b) Algumas obras de Kierkegaard traduzidas ao Português:
O Conceito de Ironia, Migalhas Filosóficas, As Obras do Amor, É preciso duvidar de tudo, Do Desespero Silencioso, O Diário do Sedutor, O Conceito de Angústia, Temor e Tremor, In Vino Veritas...
Inácio Strieder é Professor de Filosofia. Recife- PE.