Os Homens de Vermelho (Men in Red)
Os Estertores do Conclave
Vemos aqueles sacerdotes de vermelho. Reunidos de pé na Basílica de São Pedro, tendo atrás deles uma cadeira revestida de veludo também vermelho. Sacerdotes sem dotes. Velhotes. Vermelhotes. Com suas batas limpas e engomadas. Nas janelas altas as cortinas impecáveis. As cortinas o são. Eles, não. Numa outra situação, subindo suaves degraus revestidos por tapetes amarelos. Pompa e circunstância. Apenas isso. E um colaborador qualquer dizendo que “durante o Conclave o Espírito Santo guia as decisões de cada Cardeal” na escolha. Espírito Santo que provavelmente nem eles nem nós sabemos direito quem é. O pai, tudo bem. O filho também. Mas e o Espírito Santo? É quem? Vão nos mostrar um monte de teorias com as quais procurarão nos convencer a respeito da natureza do Espírito Santo.
Que o espírito existe é fato que sim. Pessoas são mais espirituosas que outras. Uns mais dedicados, por natureza, à ação. Outros à reflexão. Uns mais delicados. Outros, não. O próprio homem e a mulher são espíritos com peculiaridades distintas. É bem por isso que o taoismo chinês destaca a oposição yin x yang. E parece que isso ainda não mudou.
Só que a Igreja sustenta que o Espírito Santo é “claramente visto em muitas escrituras” como o próprio Deus. E que ele pode ser visto como uma pessoa, com mente, emoções e vontade. E, mais ainda, que assim como “só o espírito do homem sabe as coisas do homem, ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus”. Então o Espírito Santo é Deus, assim como o pai e o filho. Parece a suprema tentativa de reforço de uma ideia para que não haja quaisquer dúvidas quanto à sua aceitação.
E, no entanto, esse Espírito de Deus, que nos é apresentado como um espírito infalível, permite que um cardeal, o americano Roger Mahony, por exemplo, acusado de proteger sacerdote pedófilo, participe do conclave para a escolha do Papa. “Estando o mesmo implicado em acordo de US$ 10 milhões em casos de abusos sexuais”, conforme lemos hoje nos jornais.
O que demonstra que esses homens, cujos espíritos nada têm de santo, estão sujeitos aos pecados – por eles elencados, principalmente – de todos nós: pedofilia, abusos sexuais, roubo, inveja, cobiça, corrupção, assassinatos, etc. Mas também a atos de heroísmo, amor, carinho, altruísmo, obstinação, bom caráter, engajamento em causas populares, etc. Tudo porque são apenas homens. E nessa condição, por mais execrável que seja, esse comportamento é simplesmente natural. Porque acontece com todos os homens. O que não quer dizer que não deva ser punido. Ou por todos apreciado.
Basta verificarmos as destacadas e insólitas atuações de alguns clérigos e seus organismos. No campo dos abusos sexuais e pedofilia, são inúmeros os exemplos de hoje, em vários países, incluindo-se o Brasil. No caso de roubo, assalto ou práticas correlatas, temos o alarmante exemplo do Banco Ambrosiano, “um dos principais bancos privados católicos italianos”, parceiro do Banco do Vaticano, este último “acusado de desviar verbas secretas dos Estados Unidos, do Sindicato Solidariedade da Polônia e dos Contras, da Nicarágua”. Isto é, verbas da direita e da esquerda. Quanto a assassinatos, não podemos esquecer do radicalismo e da intolerância da “Santa” Inquisição e seus algozes, levando muitos a perecerem em fogueiras, como Joana D’Arc.
Por outro lado, permanecerá incólume a obra de Dom Helder Câmara, um exemplo de bom caráter, amor e carinho com os mais necessitados; a obstinação de Dom Mauro Morelli, bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, com a sua luta contra a fome e a miséria, “por uma igreja aberta aos problemas do mundo e pela dignidade humana”; também a de Dom Adriano Hipólito, bispo diocesano de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, alvo de perseguições do regime militar aqui implantado a partir de 1964, tendo sido em “1976 sequestrado por força parapoliciais”; e ainda o envolvimento com as causas sociais de Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns, Madre Teresa de Calcutá, apesar de não ser padre, e muitos outros.
Todas essas coisas, coisas de homens. E não de santos. Porque os homens nascem. Os santos, não. Eles são construídos muito mais a partir do que pensamos. Ou do que desejamos. E a trajetória de certos homens na terra pode levar-nos a atribuir o bem que desejamos para todos à atuação de alguma entidade metafísica subjacente apenas a alguns seres humanos. O que, embora possamos admitir que exista, ainda não temos a plena certeza da sua ocorrência.
Portanto, admitir que certos homens com seus paramentos em vermelho, reunidos na Basílica de São Pedro, tidos aparentemente como puros ou quase, admitir que eles estejam isentos de procedimentos considerados reprováveis pela sociedade, é de fato uma carga excessiva que colocamos sobre seus ombros. Não deveriam merecer tal cobrança. Mas nesse caso, não deveriam igualmente estar “protegidos” ou ungidos por essa aura de santificação. Até porque a maioria deles nada tem a ver com o ascetismo e a opção por uma vida simples e totalmente destituída das marcas do poder, professada por gente como Jesus Cristo, Francisco de Assis e muitas outras lideranças de caráter realmente religioso.
Rio, 13/03/2013