O HOMEM-RÉPTIL
O livro “A Metamorfose” de Franz Kafka poderia também ter o título “O Homem-inseto”. Em uma analogia kafkaniana quero me deter, nesta reflexão, na dimensão reptiliana do homem. Pois vejam: segundo pesquisas bioevolutivas, a hominização, no transcorrer de milhões de anos, deixou sua marca histórica na configuração do cérebro humano. A dissecação de nosso cérebro revela existirem nele três camadas predominantes distintas: a reptílica, a límbica, e a camada do neocortex (muitas vezes também confundida com a massa cinzenta).
A camada mais originária e interior ao cérebro, segundo estudiosos do assunto, é comum aos répteis e aos animais superiores. Nos répteis esta é a única camada cerebral. Ela coordena todas as características desta espécie animal. Portanto, no réptil todas as características deste animal provêm desta camada.> E o que é e faz o réptil? Serpentes, Jacarés, crocodilos, lagartos, lagartixas... são animais em que predominam os instintos de sobrevivência, agressividade, violência, sexualidade exacerbada; são animais imprevisíveis em seu comportamento, traiçoeiros, frios, sem demonstração de suas emoções. Mesmo parecendo mansos, não há garantia de domesticação. Portanto, são animais perigosos, violentos e surpreendentes.
A camada límbica, própria dos mamíferos e, eventualmente, de alguns outros animais já mais evoluídos, recobre a camada reptílica, inibindo funções predominantes entre os répteis, e tornando predominantes as características que especificam os instintos e comportamentos específicos dos mamíferos. Esta camada cerebral coordena os sentimentos, as emoções, a afetividade, comportamentos sexuais e de sobrevivência. Isto implica uma certa sabedoria de vida, com aprendizagem por imitação, com vida solidária em grupos e bandos, tipos de alimentação; com fortes determinismos instintivos. Estas novas características dos animais, com camada cerebral límbica, não anulam os potenciais da camada reptílica. Apenas se tornam predominantes em relação às características reptílicas. E em circunstâncias de enfraquecimento do poder límbico, as características reptílicas do cérebro podem ser reavivadas, fazendo com que um mamífero se comporte como um réptil.
Mas a evolução cerebral não terminou por aí, e constata-se uma terceira camada cerebral. A camada do neocortex, ou massa cinzenta. Esta camada recobre as anteriores, e suas potencialidades assumem o comando de todo o cérebro, dominando e inibindo características das outras camadas. Chegamos, assim, ao cérebro humano. Desta camada cerebral fluem as características do homo sapiens, o “animal racional” de Aristóteles. Um animal capaz de representações simbólicas, possuidor de linguagem, de raciocínio lógico, criador de culturas, com desejos de transcendência; com determinismos instintivos e sentimentos de liberdade; com impulsos solidários e individualistas ao mesmo tempo; um animal indeterminado, sujeito a um processo civilizatório.
Neste processo o próprio homem se descobre um ser ambíguo, com características diferentes e, ao mesmo tempo, comuns com os outros seres vivos. Em certas circunstâncias, demonstra atitudes predominantemente reptílicas e/ou límbicas. As potencialidades destas camadas se tornam predominantes. Por isto, descobrimos, de repente, situações em que um ser, com físico humano, age como um réptil ou um animal selvagem.
Para não me delongar demais, apenas algumas menções ao retorno do homem-réptil. Sempre somos advertidos a não reagir em caso de assaltos, nos precaver frente a pessoas estranhas, a não nos envolvermos com torcidas organizadas, com bandos, multidões desorganizadas... Por quê?
Bandidos, assaltantes, drogados têm aspecto hominizado, mas não se encontram em nível humanizado. O que predomina neles, muitas vezes, não é mais a terceira camada cerebral, mas a camada reptílica, ou puramente límbica. Se algum ser humano estiver em nível reptílico, não adianta usar a linguagem, o raciocínio, a lógica. As atitudes de réptil são traiçoeiras, imprevisíveis, sem sentimento, cruéis... por isto é muito arriscado reagir, pois não estamos mais diante de um ser humanizado, mas um réptil. Com drogas, com certas ideologias políticas e/ou religiosas alienantes o homem pode voltar a ser réptil. Por isto, todo cuidado quando nos confrontamos com tais seres.
Quando o ser humano estiver sob o predomínio da camada límbica, pode-se esperar reações menos surpreendentes, mas ainda perigosas. O animal selvagem até pode aceitar agrados, deixar-se dominar por gestos que demonstrem força, coragem, gritos, etc... Mas, infelizmente, o ser humano é um ser simulador. Não conseguimos entrar em seu íntimo. Não podemos ter certeza absoluta qual a camada cerebral que coordena seu comportamento. Somente a educação, o exercício de hábitos e virtudes, a convivência nos levam a confiar em quem realmente está civilizado, humanizado, e com a terceira camada cerebral no comando de sua vida.
Claro, em princípio o humanista é otimista. Mesmo assim não podemos ignorar os aspectos execráveis, duros, deploráveis, distorcidos, desumanos de nossa sociedade. Ambientes propícios aos homens-répteis.
Inácio Strieder é professor de Filosofia- Recife-PE.