CIDADE E SENTIDOS
Dar sentido é construir limites, é desenvolver domínios, é descobrir sítios de significância, é tornar possíveis gestos de interpretação.
Eni P. Orlandi
Discursos organizam coisas, administram sentidos, tecnicizam verdades. Hoje, conhecimento e racionalidade são tapumes de aço que cercam, ideologicamente, o próprio arcabouço jurídico gerando uma espécie de conformismo ao estabelecido. Na cidade, cantamos acorrentados e nos recusamos (não poucos) analisar as formulações e circulações dos sentidos.
Uns ignoram, outros silenciam que, além de não haver sentidos em si – existe sempre uma “relação a” – as condições contextuais são fundamentais para os efeitos simbólicos produzidos. Suas múltiplas formas nos atestam os gestos outros possíveis. O fato é que não é sério falarmos de Discursos sem admitirmos serem eles portadores de estratégias, de efeitos políticos, de silêncios, enfim, de incompletudes.
Que deslocamentos, que teorias, que ações nos darão uma Cidade? O rio de respostas é caudaloso, é complexo, é polêmico. Nilo e Amazonas de sentidos: “problema de expansão do tecido urbano”, “da modernização tecnológica”, “de aspectos econômicos”, “de desenvolvimento sócio-espacial”, “de estrutura”, de que mesmo? Os impactos são implacáveis.
Minha tese, na esteira de críticos progressistas, é que um dos piores modelos de ordenamento consiste na retórica do lucro. O discurso da hegemonia do sistema financeiro, além de gerar um modo de vida deveras superficial, fabrica uma sintaxe em que cidade é mercadoria e nela há de correr, como suporte maior, a competição empresarial. Ora, o rumo das coisas, por essa lógica, não é a construção de um Estar Bem de todos, não se trata do derruir de nossos males sociais, nada tem a ver com cidadania, no sentido pleno. Na verdade, conforme Caio Zinet, “as cidades devem ser apresentadas para os grandes investidores”. Não é preciso muito esforço para descobrirmos que uma espécie de cruzada global se mobiliza, aceleradamente, mirando grandes investimentos, através do que chamam de “centro de investimento”. O lucro é o moinho pelo qual tudo passa.
Alternativas, destarte, a esse modelo passam pelas desconstruções dos olhares fascistas que nos impingem leituras hegemônicas como se nossas vidas fossem um chafurdar de meras compreensões. A linguagem vai da tragédia à farsa adequando e modelando margens de manobras em dizeres complexos, sob vernizes cientificistas e tecnológicos, jurando neutralidade e racionalidade. Despoluição do falso, amigo, exige, inclusive, que sejamos capazes de perceber os fatores que se movimentam em várias escalas. A cidade é um bólido de significações e a venda dessas imagens aspira a uma configuração de cidadania que, às vezes, o muito é mesmo o apequenamento político. No caso da cidade capitalista, estou com Veiner: “ela é um produto e é uma condição de reprodução do capital, mas ela também é o lugar de reprodução da vida”.
Discursos, enfim, excludentes, que dizem para silenciar, reforçadores de “cidades empresas”, que tentam normalizar as desigualdades, que trapaceiam com as políticas sociais, que centram o desenvolvimento no lucro, que açulem a especulação generalizada, geradores de sentimento de culpa nos marginalizados e excluídos, que cultuam medos e embotam desafios reais, que emporcalham o sentido maior de Democracia Participativa e que alardeiam ser as alternativas verdadeiras, devem, sim, ser combatidos implacavelmente. Afinal, discursos dignos, libertadores, são aqueles que nos forçam a pensar “na conquista de melhor qualidade de vida para um número crescente de pessoas e de cada vez mais justiça social”.