Alguns pesos e outras medidas

Há o dito popular "dois pesos e duas medidas". Sobre o trágico incidente envolvendo o torcedor boliviano, vítima, e o torcedor corinthiano, provocador do evento desencadeante da fatalidade, nota-se que há uma amostragem (e pelos frutos conhecemos a árvore) de um universo de personas que desenvolvem papéis dentro e fora dos estádios de futebol. O episódio da morte do torcedor boliviano não foi um acontecimento propriamente esportivo, foi um fato social, um desembocar do âmbito social no campo esportivo. Trata-se de cidadãos influenciados por normas de conduta, conceitos arraigados em subgrupos sociais, leis e formação cidadã, posto isso, reflito sobre a coletividade brasileira e sul-americana em relação às posturas diante da modalidade esportiva mais popular do continente. Não é um fato novo a ocorrência de tragédias em estádios sul-americanos, mas de um histórico e funesto traço cultural a ser burilado pedagogicamente...

As autoridades diretas do âmbito esportivo, atualmente têm a possibilidade de cumprir o papel corretivo pertinente no sentido de reestruturar mentalidades estabelecidas, junto aos torcedores, com colaboração da mídia e dando exemplos de lisura dentre os próprios integrantes das confederações futebolísticas. O poder público, responsável constitucionalmente pela manutenção da ordem e da segurança individual e coletiva, precisa exercer efetivamente o que deveria ser o natural, a regra, e não um destoante proceder diante de catástrofes, como uma morte de torcedor, em meio ao cotidiano que deixa, à margem, garantias de bom convívio e a harmonia entre torcedores e cidadãos. Considero determinado contingente infiltrado em torcidas organizadas como um Estado paralelo de Direito, com direito à delinquência, manifesta, dentre outras facetas, pelo narcotráfico, um cancro social, uma bomba atômica metafórica das drogas, cujo tema já foi abordado por este autor no artigo publicado no Recanto das Letras, intitulado "Entorpecentes bombas atômicas" (www.recantodasletras.com.br/artigos/1338273), um retrato do que concebo como o grande mal da humanidade nas últimas décadas. Cito novamente os dois pesos e as duas medidas...

Se o Corinthians recebeu a imputação de penalidade, que a meu ver deveria ser de drástico banimento da competição atual, e até o cancelamento da competição, o San José também o deveria, o policiamento boliviano e demais agentes de segurança, imbuídos da missão da salvaguarda da integridade de torcedores e cidadãos brasileiros, bolivianos etc. em solo boliviano, sob as leis daquele território, também deveriam sofrer sanções, bem como torcedores de outros clubes que notoriamente foram retratados pela mídia utilizado, neste ano, os mesmos artefatos periculosos e abolidos pelo regulamento da Taça Libertadores da América. O que fazer daqui por diante a cada uso de sinalizadores, fogos de artifício e instrumentos tipificados como armas brancas? Clubes e seleções já deixaram de participar de competições em situações de litígios diplomáticos e guerras, ou foram banidos por estes mesmos contextos sociais, além disso, edições de competições de envergadura deixaram de ser realizadas por razões similares, e em se tratando de morte de torcedor, seria uma boa medida o cancelamento da atual Taça Libertadores da América. Óbito na seara da Confederação Sul-americana de Futebol é razão para término da competição por ela realizada, extinga-se assim o certame. Pimenta no olho alheio é colírio, e se o cancelamento da competição trouxer prejuízos materiais à Confederação, então que não se faça do Corinthians um mero bode-expiatório, compartilhe-se a "dor no bolso".

Tal proceder deveria ser precedido de medidas educativas vigorosas, partindo-se das entranhas dos condutores do meio esportivo futebolístico, com propósitos reais de resgate do bom convívio no seio social e esportivo, capilarizados em exemplos morais nas confederações e governos de cada país, no sentido de seguir o exemplar contexto britânico, vitimado por abomináveis torcidas nos anos de 1980, cujo caso emblemático foi o dos "hooligans".

Sugiro as ponderações: o que se vê nos estádios ingleses hoje? Alambrados separando torcedores, do campo de jogo? Como se comportam esses torcedores? É um reflexo da sociedade inglesa? É um fruto da ação governamental na mentalidade e na cidadania de seu povo? É exclusividade dos ingleses ou os brasileiros, sul-americanos etc. podem chegar a tal patamar de civilidade dentro e fora de um estádio?

A maior beligerância entre torcedores vinculados a clubes brasileiros ocorreu no Estádio do Pacaembu, nos anos de 1990, entre torcedores de Palmeiras e São Paulo, em jogo de juniores, com uma horrenda guerra tribal que resultou em morte de torcedor e um salve-se quem puder no gramado do estádio, com direito a paus e pedras voando para todos os lados, como "mísseis" em campo de guerra, ou "catapultas medievais". Houve a deliberada inclinação de inúmeros torcedores desses clubes para o confronto que registou um embate que maculou o futebol paulista desde então. Que frutos sócioesportivos surgiram desde então?

A "gota para trasbordar o oceano" pode ter sido o mencionado fatídico óbito no jogo da Taça Libertadores da América, quiçá seja um marco da Libertação da América no futebol, dessa mentalidade beligerante, espelho de mazelas sociais, corrompimento de entidades, fraqueza de poderes estalelecidos e segmentos sociais decadentes, vitimados por seus pares e por seus representantes.

Augusto Matos

Post scriptum: 27 de fevereiro de 2013 - Corinthians 2x0 Millionarios (jogo que poderia não ter ocorrido)

Augusto Matos
Enviado por Augusto Matos em 28/02/2013
Reeditado em 06/03/2013
Código do texto: T4163563
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