VALOR E QUALIDADE DE VIDA
Naturalmente a vida é o valor máximo que possuímos nesta terra. Quando a vida está em jogo, todos os outros valores perdem seu valor. A ética mais tradicional ensina que, frente a situações em que a vida está em questão, desaparece o direito à propriedade particular, e é permitido retirar-se o alimento de quem o retém, sem que isto seja roubo; para salvar a alguém de seus perseguidores injustos é permitido enganá-los, sem que isto seja mentira; em legítima defesa pode-se matar, sem que isto seja homicídio doloso...
Tudo é permitido para sustentar, proteger e valorizar a vida humana. Desde a Antiguidade estão aí os médicos para cuidar da conservação da vida; a sociedade instituiu a segurança, a polícia, o exército, a justiça para proteger e conservar a vida dos cidadãos.
Na medida em que a civilização progride, não apenas há preocupação com a sobrevivência e conservação da vida, mas os povos buscam também melhorar a qualidade de vida. E onde a qualidade de vida aumenta, cresce também o valor que se atribui à vida. E, ao inverso, onde a qualidade de vida se deteriora, também decresce o valor da vida. Por isto, pode-se estabelecer, na maioria dos casos, uma relação direta entre a qualidade de vida de um povo e o valor que este povo atribui à vida. Mas, o que gera qualidade de vida?
Naturalmente não são apenas os bens econômicos que servem de parâmetro para se medir a qualidade de vida. De certa forma, pode-se conceder que os bens econômicos sejam a base que possibilita a qualidade de vida. Mas, para se avaliar a qualidade de vida é preciso tomar em consideração também os níveis de educação, de racionalidade, de consciência, de liberdade, de saúde, de habitação, de alimentação, de caráter da população,.
Muito dinheiro nas mãos de um ignorante não necessariamente o caracterizará como alguém que valoriza a vida. Há casos de pessoas com muito dinheiro que se suicidam por problemas de saúde física ou psíquica. Portanto, para se poder falar em qualidade de vida, e em valorização da vida, é preciso que se conjuguem um complexo de fatores. A miséria de um povo não se limita à miséria econômica. Por isto, é ilusão afirmar que com o bolsa família se acabará com a miséria do povo brasileiro.. Isto apenas é um aspecto. E, realmente, só pode ser o começo.
Bem. Mas a minha intenção, ao refletir sobre a vida, é tecer algumas considerações sobre a questão da pena de morte no Brasil. Tema, de repente, na boca de populares, jornalistas e midiáticos na TV.
A história registra que os homens, em todos os tempos, individual e coletivamente, admitiram (e admitem) o direito de matar em circunstâncias excepcionais, como: em legítima defesa e nas guerras. Disto segue que, em tais circunstâncias, se não queremos ser hipócritas, todos somos a favor da “pena de morte”. Mas, o problema que ora quero discutir é outro: a pena de morte como prática normal e oficial da sociedade.
Na minha opinião, uma oficialização da pena de morte, hoje, em situações normais da sociedade, seria um tremendo retrocesso civilizatório. Pois, considero que o sentido do Estado é defender, sustentar, valorizar e melhorar a vida de todos os cidadãos, e não tirar a vida deles. Isto não significa que, em circunstâncias excepcionais, o Estado não se veja obrigado a tirar a vida de alguém para garantir a vida de cidadãos inocentes ameaçada por marginais.
Da mesma forma como a profissão do médico existe para sustentar a vida, e não para abortá-la ou abreviá-la, assim também o Estado existe em função do valor da vida. A pena de morte legal e ordinária seria a negação do sentido da existência do Estado.
Deste modo, todos aqueles que fazem o Estado, que somos nós, mas que estamos representados pelos legisladores, políticos e pelos que exercem funções públicas, antes de discutirmos a conveniência da pena de morte deveríamos nos perguntar se o Governo, e nós como cidadãos, já fizemos tudo o que está ao nosso alcance para instaurar no país a qualidade de vida compatível com as possibilidades do momento histórico em que vivemos.
De minha parte, até admitiria a discussão sobre a conveniência da pena de morte no Brasil, se todas as crianças deste país tivessem acesso a uma escola de qualidade; se as cidades e o campo estivessem organizados adequadamente; se fosse feita uma justa reforma agrária; se as oligarquias retrógradas se educassem socialmente, e se orgulhassem de serem cidadãos brasileiros; se houvesse distribuição adequada de renda; se houvesse participação nos lucros das empresas pelos operários; se houvesse uma hierarquia adequada nos salários, públicos e particulares; se houvesse emprego para os pais de família poderem sustentar humanamente seus filhos...; enfim, se o país estivesse educado e organizado humanitariamente.
Depois de tudo isto feito, se ainda continuassem os crimes hediondos em proporções anormais, a sociedade, no meu entender, teria direito de apelar para medidas de exceção contra tais abusos, adotando medidas de legítima defesa.
Medidas excepcionais, para situações excepcionais, a história não deixa de relatar. Para caracterizar situações excepcionais teríamos como parâmetro a constituição do país. Isto evitaria abusos. Mas, querer a pena de morte, agora, no século XXI, como justiça ordinária, seria um atraso civilizatório e uma patologia social.
Com certeza, a saudade da pena de morte não se manifestaria, nem no povo, nem na mente de qualquer sádico, se tudo fosse feito para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. O desejo mórbido da pena de morte é mais um sintoma do nível de irracionalidade e inconsciência em que nos encontramos. Só com qualidade de vida se valorizará e respeitará a vida.
Sem uma sociedade humanizada, em todos os sentidos, continuaremos com a “pena de morte bárbara”, já existente no Brasil, aplicada por traficantes, por pistoleiros, por esquadrões da morte, por milícias, por grupos de extermínio, por gangues, por sequestradores, por assaltantes, por policiais despreparados, e por tantos outros criminosos.
É triste viajar ao exterior e ouvirmos os comentários sobre o Brasil, como país de gangsters, de políticos e empresários corruptos. Para reverter esta imagem, e permanecer no rol das nações civilizadas, é preciso uma política voltada, fundamentalmente, para a dignificação da vida de todos os cidadãos. Isto também incluiria a desfavelização do país.
Deixar a aplicação da pena de morte à decisão emocional do povo, tolerando linchamentos e execuções sumárias, implica em perguntarmos com quantas execuções por dia, por mês, por ano o sadismo popular e das elites se satisfaria.
Inácio Strieder é professor de Filosofia- Recife- PE.