O DOUTOR CARNIÇA

Nos anos oitenta, do século passado, quando lecionava na Universidade Católica de Pernambuco, o Diretor do Centro de Ciências Humanas, de vez em quando, convidava o Arcebispo Dom Helder Camara para encontros com alguns professores em sua casa, em Olinda. Num destes encontros, Dom Helder contou a história do Doutor Carniça. Esta história, no meu entender, merece ser registrada e lembrada.

Este Doutor Carniça era um especialista em carnes jogadas no Lixão da Muribeca, no grande Recife. O Dr. Carniça tinha um barraco neste lixão, e recolhia as carnes que eram trazidas pelos caminhões de lixo, e jogadas fora. O Dr. Carniça classificava estas carnes em várias categorias. Era especialista nisto.

Algumas destas carnes ainda podiam ser lavadas, salgadas e vendidas, por preços insignificantes, aos coletores daquele lixão, ou para os moradores das favelas próximas; outras carnes eram secadas ao sol e, depois, consumidas; uma terceira categoria de carnes somente podia ser destinada para alimentação dos cachorros; e a quarta categoria, finalmente voltava para os urubus do lixão.

Para o Lixão da Muribeca eram trazidos também muitos peixes. O Dr. Carniça examinava a qualidade destes peixes. Pegava o peixe, e ia direto ao olho dele. Apertava o olho. Se o olho estourasse, o peixe não prestava mais para consumo humano. O destino era novamente o lixão, para alegria dos urubus e das gaivotas.

E aqui entra Dom Helder. O Arcebispo relatou então aos professores reunidos que, em certa ocasião, foi convidado por empresários para abençoar a inauguração de uma fábrica no Grande Recife. Na festa da inauguração estava presente 80% do PIB pernambucano. Empresários que até tinham vindo com seu jatinho particular.

Pelo que Dom Helder contou, a festa estava muito bem regada com Black Label e outras bebidas de categoria. Pelas tantas, nestas épocas sem Lei Seca, quando os ânimos dos empresários já estavam liberados pelo “spiritus” etílico, um empresário se aproximou de Dom Helder, que se limitava a tomar sua água mineral, e meio cambaleante bateu nos ombros do “bispo vermelho”: “Dom Helder, o Senhor não acha esta festa uma maravilha?”.

Dom Helder, sentindo a desinibição deste empresário bem sucedido, lhe fez uma proposta: “Meu amigo, você aceitaria me acompanhar para ver uma outra realidade? Em 10 minutos lhe mostrarei o oposto desta grande e alegre festa”. O Empresário topou, e convidou mais alguns colegas para acompanhar Dom Helder. E assim uma meia dúzia de empresários acompanhou Dom Helder na visita ao Dr. Carniça.

No Lixão da Muribeca o Dr. Carniça, espantado com a visita inesperada de Dom Helder e sua comitiva, detalhou aos empresários sua especialidade, legitimando seu título de “Doutor”. Dom Helder esperava que os empresários se sensibilizassem com tal miséria. Mas, em vez desta comiseração, um dos empresários se saiu com esta: “Mas, Dom Helder, isto daria um filme!”

E Dom Helder concluiu: “Em vez de estes empresários se condoerem com tanta miséria humana, apenas imaginaram que a história do Dr. Carniça poderia render dinheiro, com a produção de um filme”.

Que cada leitor tire as conclusões desta história real do Dr. Carniça. Pois, em nossas periferias, e entranhas nacionais, existem milhares de “doutores”, nas condições do Dr. Carniça, que servem de degraus para políticos e empresários corruptos e insensíveis aumentarem seu prestígio e fortuna. Não acham?!

Inácio Strieder é Professor de Filosofia - Recife- PE