A tragédia de Santa Maria
A imprensa se chafurda na tragédia. Apresentadores consternados de telejornais dão as notícias. As imagens dantescas do episódio se repetem à exaustão. Familiares desesperados sendo procurados para dar depoimentos. Tentativas de encontrar culpados são feitas a todo o momento. Nação em luto. Times de futebol em luto. Todos em luto.
Mais uma vez, uma tragédia anunciada há muito, se torna real pela absoluta corrupção de uma sociedade moralmente já desqualificada. Um estabelecimento com mínimas condições de segurança, excesso de frequentadores, em sua maioria na faixa de 16 a 20 anos, num horário que não era matinee, portanto, dezenas de jovens ainda menores de idade, num ambiente de permissividade sexual e tolerância total a bebidas alcoolicas. Interessante que o local estava com alvará vencido e continuava a funcionar, pois de acordo com o corpo de bombeiros local, o local tinha extintores e sinalização adequada para casos de emergência. E, daí? Havia alvará de funcionamento? Não! Mas, estava funcionando. Se o departamento de fiscalização do corpo de bombeiro de Santa Maria, composto por membros da sociedade brasileira, assim como eu e você, tivesse interposto recurso para a suspensão das atividades da casa de show até a expedição do referido documento, tudo dentro de atos perfeitamente legais, certamente, 234 jovens e seus familiares não teriam tido suas vidas destruídas pela estupidez humana, traduzida pela ganância, pela servidão às drogas e sexo descomprometido.
Centenas de jovens deslumbrados com a vida fácil, empolgados pela balada e totalmente determinados a "curtir" a vida de forma geral, pois para a grande maioria, a vida passa rápido e daqui a pouco estarão velhos, aproveitavam a noite parecendo estar alegres e sadios, se entregavam ao consumo de bebidas exagerado, misturado com energizantes, para dar um algo mais à noite de paquera e embalo. Eles também são povo. Pertencem à sociedade brasileira.
Os seguranças, despreparados e arrogantes como é comum neste tipo de casa de diversão, não souberam controlar a garotada descontrolada e desesperada, e quando foram utilizar os poucos equipamentos de extinção de fogo, estes não manuseados adequadamente, falharam. Interessante que senão todos, mas pelo menos a maioria deles, seguranças, conseguiram escapar, ou seja, foram eficazes na autoevacuação do prédio, enquanto deixavam a rapaziada inebriada pela mistura de fumaça e alcool, agonizante para trás. Os seguranças também são povo. Pertencem à sociedade brasileira.
A banda, pivô da tragédia, que fim levou. Morreram os seus integrantes? Se sobreviveram, saíram por onde? Pela mesma porta em que tantos tentaram e não conseguiram, ou se safaram pelos fundos da boate? Eles também são povo. Pertencem à sociedade brasileira.
O proprietário do estabelecimento estava em choque quando compareceu à delegacia na manhã de domingo para prestar depoimento. Em vista de seu estado foi liberado por aquele dia. Coitado! Ele também é povo. Pertence à sociedade brasileira.
O prefeito, o coronel do corpo de bombeiros, a polícia, caramba, estão todos agora empenhados em descobrir a causa do acidente trágico, quando a culpa está inteiramente em suas próprias mãos incompetentes, inoperantes, omissas e, mesmo, gananciosas. Eles são o retrato fiel do que ocorre com praticamente todas as autarquias municipais, estaduais e federais. Mas, eles também são povo. Pertencem à sociedade brasileira.
Agora, vai começar aquela palhaçada de cobrar maior fiscalização de casas de show. Algumas serão temporariamente suspensas de suas atividades. Outras serão multadas. A imprensa se deliciará com isso. Venderá um pouco mais de jornais e revistas, melhores pontos de audiência para programas já saturados como Domingão do Faustão e Fantástico. Será uma grande farra por alguns dias. Os artistas serão os pobres familiares das vítimas. Será a perpetuação da tragédia, sendo que agora a da tragédia moral humana.
Este tipo de coisa existe todo dia e em todo lugar. Todos nós sabemos que a maioria dos estabelecimentos seja de shows ou comerciais, tais como restaurantes, shoppings, ou veículos de transporte público tais como metrô, ônibus, trens, táxis, barcas, etc., em nosso país são altamente perigosos. Alguém duvida de sua segurança, de sua manutenção adequada e da fiscalização rigorosa. Eu mesmo em meu prédio num bairro de classe média do Rio de Janeiro, sou obrigado a conviver com lojas em nosso andar térreo, sem qualquer equipamento de segurança contra incêndio. Os bombeiros, a prefeitura, a região administrativa, até o estado, já foram avisados. Chegamos a denunciar junto ao Ministério Público o qual solicitou a averiguação de nossas denúncias. O corpo de bombeiro foi até o local, constatou todas as irregularidades, notificou a todos os lojistas, nenhuma solicitação foi atendida e as lojas continuam a funcionar, normalmente. Todos nós somos povo. Todos nós pertencemos à sociedade brasileira.
Onde está a imprensa para denunciar tais fatos? Isto não dá audiência, porque ainda está todo mundo vivo, não há mortes, não há a tragédia. Mas, além do meu prédio, há milhares de tantas outras tragédias anunciadas e ainda por vir. É uma questão de tempo, de omissão, de covardia, de acomodação, de inoperância, de desrespeito, de ignorância, de ganância, de esperteza e de corrupção.
Moralmente falidos continuamos a viver de bolsas família. Realmente, nós, povo brasileiro, merecemos os governantes que elegemos. Viva o povo brasileiro!
Mas, aos meninos e meninas que morreram, que o seu sacrífico não tenha sido, realmente, em vão. Que suas mortes nos sirvam, agora e para daqui para a frente, tomarmos vergonha na cara e passarmos a ser cidadãos de fato e cobrar de nós, dos outros e dos governantes que elegemos a cada dois anos, uma postura correta, cidadã e patriótica, pois tudo isso tem sido apenas uma questão de retórica e utopia.