A doce vida da empregada doméstica
É vergonhoso o grande número de empregados domésticos que temos no Brasil. Em notícia recente acabei de saber que somos o país com o maior número deles. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), eles são 7,2 milhões de um total de mais ou menos 52 milhões no mundo. Estima-se que no país, 70% deles labutam na ilegalidade sem qualquer garantia trabalhista. A notícia apareceu sem grandes mobilizações. O silêncio, nestas ocasiões, faz parte de nossa cordialidade e capacidade de suportar a tudo e a todos. No entanto, não vejo razão para a festa porque esta “profissão” no país tem raízes históricas nada invejáveis e escondem características de nossa cultura ainda autoritária, hierárquica e machista.
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A empregada doméstica, talvez a mais comum dos empregados domésticos no Brasil, encontra raízes na cultura da casa-grande e da senzala, onde paulatinamente as escravas mais bonitinhas eram as mais escolhidas para trabalhar. Depois da abolição o patriarca já não fazia tantas distinções. Trabalho é trabalho e o que elas faziam além do pesado labor doméstico, não vou nem mencionar, mas sabemos que a elas eram delegadas várias atividades, muitas delas eternizadas na obra de Jean-Baptiste Debret (1768-1848).
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Nos dias atuais as profissionais domésticas lutam por direitos. Uma luta política que se arrasta por anos porque inexiste o interesse de garantir os direitos mais elementares do trabalhador como a definição da jornada de trabalho, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o seguro-desemprego, o benefício por acidente de trabalho, o adicional por trabalho noturno, a hora extra e o salário-família. Não é possível que um ser humano não possa ter a ideia de onde inicia e termina o seu serviço, também não é possível que estes seres humanos ainda não sejam tratados como tais e, não é possível nossa incapacidade em regularizar com certa civilidade suas atividades.
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O leitor pode argumentar que não passa de um trabalho como outro qualquer. Mas o fato é que a natureza do trabalho doméstico não é a do trabalho industrial, tampouco a do trabalho em serviços (comércio, segurança pública, hospitais, etc). A empregada doméstica é o sujeito que “faz de tudo dentro e fora de casa”: lava, passa, cozinha, prepara o almoço e a janta e ainda cuida dos filhos. Por vezes é obrigada a ficar além da hora, ter que brincar com os meninos e estar sempre prestativa como “o pau de toda obra”. Esse é o trabalho da empregada doméstica que fica na sombra da “dona de casa”. Condição desfavorável e vexatória, mas que no mercado - longe da pesquisa da OIT - está difícil de encontrar porque de acordo com uma amiga, "tem gente que não quer trabalhar".
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Esse discurso da elite burguesa ou pequeno-burguesa que vive e anda caçando neste país é avassalador. Ganha legitimidade nas novelas e nas reportagens de TV e jornais. Mas vamos ser francos: a verdade é que já na busca desta empregada doméstica existe o feitor pós-moderno. Em geral, busca-se no interior dos estados e nos lugares mais pobres a filha de uma família humilde que não tem grandes perspectivas de vida. Se tiver boa aparência, for religiosa e semianalfabeta melhor. Retirada do seu mundo, alienada diante das "novas" condições que lhe são apresentadas na outra casa a “empregada” logo se encanta pelo uniforme ridículo ou pelas roupas usadas que a patroa passa para ela. Quando moram no ambiente de trabalho são encaminhadas ao “quarto de despejo” ou ao quarto no qual ela vai se esconder e chorar mágoas. Uma cama, um criado mudo (às vezes uma cômoda) e um guarda-roupa - na maioria das vezes usados - são a mobília do local. A porta quase não se fecha porque “pessoas de quartinho” e que podem ser chamadas a qualquer momento não precisam de privacidade.
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Ainda no seu “novo” lar é hora de ensinar o básico. Não pode isso ou aquilo. Não se fala isso ou aquilo. E não se meta ou toque nisso ou naquilo. Também não venha reclamar e, caso reclame, só com voz e face baixas, pois respeito ao feitor é fundamental. As famílias mais cordiais tendem a dizer que se trata de “um membro da família”, mas um membro que não pode sentar-se à mesa na hora do café, do almoço e do jantar e, quando se senta é porque os patrões querem fazer média ou estão solitários. No mais cumpre neste trabalho permanecer atenta para quando for acionada. E se demorar, é óbvio que vai receber o devido “pito” porque deveria adivinhar o que acontece na casa.
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Talvez essa capacidade de naturalizar as relações torna a profissão curiosa. O “quase da família” vem acompanhado de sua invisibilidade. Este paradoxo passa a ser necessário e, por vezes, obrigatório. Cumpre a doméstica falar somente quando chamada e “ai dela” se der a opinião que pode auxiliar na educação dos filhos ou economizar na casa. Por outro lado, ela serve muito bem para colocar as fofocas do prédio e dos condomínios em dia ou para quebrar o galho da patroa que não pode ficar com os filhos devido a compromissos pessoais. Aí é hora de ela ser proibida de ver a TV por assinatura, brincar no Playstation ou de fazer uma refeição de respeito, pois nessa profissão se come antes ou depois dos patrões, mas nunca na hora certa.
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A indignação de minha amiga branca é compreensível, ela trabalha muito e quase não sobra tempo para fazer o dever de casa. Ela aponta os dedos para as “diaristas” que “não tem mais tempo para ela”. A pequena burguesa repete o canto da dona da casa e esquece que elas são - pelo menos no momento daquele “não” - iguais. Na realidade, deve ser difícil para ela suportar estas diaristas que estão revolucionando o mercado de trabalho doméstico. Esse “ser que vive do trabalho” como quer os sociólogos é algo genial. Ela vai quando se paga bem, quando quer e quando tem sua agenda livre. Agenda cheia... Danem-se os que não podem esperar ou que arrumem outra. Essa revolução é a pérola do liberalismo míope que ganhou vida no Brasil. Mais que isso, é a liberdade nas relações de trabalho e a hora de dizer adeus ao patrão e a patroa.
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Os números dos empregados domésticos no Brasil, infelizmente, não revelam a proximidade do fim desta revolução. Talvez ela nem aconteça, as matrizes culturais brasileiras foram forjadas com sangue escravo, depois com "cidadãos de segunda classe". Atualmente temos uma “ralé” que luta para ver o filho "doutor". Não sei para que, mas provavelmente para dar razões a uma elite malcriada que não tem a vergonha na cara de respeitar o descanso, o salário digno e a intenção de melhores perspectivas de vida. É essa mesma elite que anda a reclamar da falta de “empregados” (secretárias) para fazer o trabalho sujo da casa. Infelizmente, ainda são muitos os operários domésticos, pois gostaria de ver madames e patrões lambuzando a mão em privadas, se entortando na pia com gordura, se sujando na poeira e gastando tempo limpando o chão. Seria a glória vê-los em sua humanidade, sem a necessidade de submeter os outros porque são “domésticos”, inferiores, pobres e humildes. Que pena não estar vivo para ver as coisas mudarem a ponto de vê-los ganhando salário, correndo atrás de ônibus coletivo, se escondendo da polícia na noite ou sofrendo nas filas do hospital público. Sabemos que estamos longe disso e que ninguém se importa. Deixo somente o registro.