O gaúcho do século XX, por Mário Maestri
"infelizmente encontrei este texto tarde, acredito que seja de 2006, mas é interessntissimo e vale a pena a leitura".
O encerramento da promoção "Os 20 gaúchos que marcaram o século", da RBS, realizou-se, em noite de gala, em 14 de dezembro, em Porto Alegre, no Teatro São Pedro, com a presença do governador Olívio Dutra.
A campanha jornalística propôs, por sete semanas, que leitores de Zero Hora escolhessem, em lista pré-fixada de 45 nomes, os vinte gaúchos que mais se destacaram no século 20 e, se quisessem, assinalassem cinco nomes não indicados. Após definida a high-society do passado gaúcho, produziram-se programas televisivos sobre os escolhidos.
A campanha foi um grande sucesso, que reafirmou a indiscutível criatividade da RBS na gestão do imaginário popular gaúcho. Mais de 1.700.000 cédulas, publicadas na Zero Hora e distribuídas em lojas, foram depositadas em urnas, ocorrendo campanhas para colocar vivos e mortos entre os "vinte mais".
Por diversas razões, a população sulina possui escassa informação histórica. Tal fato contribuiu para que a definição dos "vinte mais" constituísse mais uma formação da consciência gaúcha do que uma informação da população sobre o passado. Nos fatos, essa proposta corresponde ao projeto da RBS, que optou pela construção de veículos jornalísticos, radiofônicos e televisivos de alta qualidade técnica, dedicados a formar a opinião popular, mais do que a informá-la.
A campanha não propôs conhecer o passado para nele escolher os personagens a serem discutidos. Ao contrário, optou por discutir o passado a partir dos personagens escolhidos. Portanto, compreende-se o dirigismo embutido na escolha dos "20 gaúchos que marcaram o século XX" em lista de 45 nomes produzida pelos promotores, a partir de "consultas" com três historiadores e um jornalista.
Os resultados finais comprovaram que as cinco "sugestões" permitidas, não obrigatórias, não interferiram na escolha final. Dos vinte ‘vencedores’, dezenove foram propostos pela "lista dos 45". Os "vinte mais" da RBS não refletiram a apreciação livre da população gaúcha sobre os vultos do passado, seja qual ela fosse. Porém, a partir de agora, ela certamente passou a determinar essa avaliação.
Do ponto de vista historiográfico, a campanha promoveu uma visão trivial e positivista da história. A lista "dos vinte mais" sugere a construção do passado como produto da intervenção providencial de homens excelentes, desqualificando a história como resultado da luta e do trabalho das grandes massas anônimas.
Praticamente não há negros, mulheres e trabalhadores entre os nomes apresentados à escolha e entre os selecionados. Dos quarenta e cinco nomes sugeridos originalmente, só três eram de mulheres —uma cantora, uma miss e uma escritora.
Subestimou-se também a contribuição afro-gaúcha ao passado sulino, saindo inevitavelmente fortalecido o mito racista da construção exclusiva do RS pelos europeus. E, nesse caso, a coisa piorou com o resultado final. Dos três negros propostos —um sambista e dois futebolistas—, apenas um, o cantor Lupicínio Rodrigues, ficou entre os "vinte mais". A ausência de negros de destaque nos "vinte mais" deveu-se à lista proposta inicialmente. Por exemplo, nela não se encontrava o nome de Alceu Colares, primeiro governador negro do RS, fato histórico que independe da avaliação de sua gestão. Houve outros esquecimentos paradoxais.
Os líderes que se tornaram registros candentes do passado são sobretudo homens e mulheres arrancados do anonimato pela vontade popular. O ‘esquecimento’ na "lista dos 45" de João Cândido, o Almirante Negro, gaúcho de Rio Pardo, descendente de escravos, dirigente da maior sublevação de marinheiros do século 20, constitui verdadeiro veto histórico-ideológico ao negro luminar.
Leonel Brizola, citado na lista dos 45, não está entre os "vinte mais", numa descortês retaliação que o líder da Legalidade e criativo governador gaúcho não merecia. Ainda mais que a ausência retira seriedade à campanha. Recente pesquisa científica entre os gaúchos determinou Leonel Brizola como o segundo grande personagem da história sulina, após Getúlio Vargas e antes de Bento Gonçalves!
Na primeira e na lista final, não se encontra o nome de Olívio Dutra, o bancário que dirigiu uma das grandes greves que abalaram a ditadura, fundou o PT gaúcho e foi o primeiro sindicalista eleito prefeito da capital e governador do estado.
A lista dos "20 mais" propõe que o RS tenha sido construído por indivíduos do sexo masculino, brancos e ricos. Um retrato longe do perfil da imensa e sofrida população sulina, que vem reivindicando, nas últimas décadas, desesperadamente, mudanças essenciais na sua história. Para deixar claro o que se propunha aos gaúchos, nos agraciados pela campanha, encontram-se 3 empresários e nenhum sindicalista.
Essa iniciativa poderia ter ensejado um interessante e necessário debate, promovido por historiadores, cientistas sociais e lideranças culturais do estado, sobre a crescente determinação, pelos meios de comunicação de massa, da consciência da população sulina e brasileira sobre o passado e, assim, sobre o presente e o futuro.