João Branco Sem Cota: Euro-Descendente-Excluído
Neto de imigrantes italianos, João Branco Sem-Cota nasceu pobre e cedo conheceu a fome. Juntou-se com Severina, com quem compartilhava o barraco e a varanda, onde cultivavam flores de pindaíba. Lutaram a vida toda para alimentar os filhos, brancos como o leite que lhes faltava. Os bambinos herdaram-lhe a miséria e, como o pai, não tinham os dentes da frente, e nem esperança de estudar, formar-se, arrumar empregos melhores e obter os dentes da frente, afinal, além de pobres, nasceram brancos e sem direitos a cotas. João Branco Sem Cota, e seu clã, estão entre os milhões de euro-descendentes excluídos.
Um dia João Branco Sem Cota, aposentou-se por invalidez. Mas para continuar pagando o aluguel e alimentando os filhos, teve de arrumar um carrinho de catar papelão, e partir para as ruas. Catava papelão, curtindo sol, desprezo e preconceito. Catava também muitas latinhas, que os seus irmãos (por parte de Pátria), atiravam ao chão, com todo requinte cidadão. Eram os educados filhos da Pátria, ajudando no sustento de João e seus filhos.
João Branco Sem Cota morreu ontem. Estorvou os passantes e atrapalhou a fila do banco, pois morreu na calçada, encostado em seu carrinho de catar papelão e latinhas. Sua família branca sem cota chorou-lhe morte, com café frio, de quinta. João Branco Sem Cota descansou naqueles túmulos públicos, minúsculos, uns por cima dos outros, reservados aos excluídos. Embora tivesse que dividi-la com outros, foi orgulho de seu clã, afinal João obteve agora, sua tão sonhada casa própria...
Os avós de João Branco Sem Cota vieram para o Brasil, vindos da Itália, estimulados pela propaganda que havia em seu país, de que os que vinham para o Brasil trabalhar na lavoura, em pouco tempo ficavam ricos e voltavam para a Itália. E como naquela época esse país vivia momentos miseráveis, convinha ao governo italiano que seus excluídos sumissem dali para sempre, antes que fizessem alguma revolução... E assim enganados, os excluídos vieram, e nunca puderam voltar: ficaram o resto de suas vidas na lida do café, em troca de polenta e trapos. Morreram com a esperança de que a nova Pátria garantisse aos filhos, que eram brasileiros, um futuro digno. E agora, ele, João Branco, neto e segunda geração de brasileiros, morreria sem deixar para os filhos (terceira geração de brasileiros) condições de levar uma vida mais digna.
João Branco Sem Cota não levou para a vala comum, sua última morada, a esperança de deixar nenhum filho doutor, afinal, a pobreza e a pele branca foi a única herança que lhes deixou. Per infelicità, além de branco, um de seus filhos puxou a mãe, Severina, e possui olhos azuis. Poverello, jamais terá cotas... Quem sabe os netos desse bambino de olhos azuis, ao invés de depender de cotas, tenham a sorte de nascer num tempo em que o governo invista em igualdade social, distribuição de renda e melhorias na condição de vida da população em geral, ao invés de tentar resolver as coisas de modo seletivo, e pior, racialmente seletivo, criando favorecidos e EXCLUÍDOS.
Uma das justificativas de se escolher, ENTRE OS EXCLUÍDOS, os afro-descendentes, para ganhar cotas nas universidades, é a de que a Nação possui uma dívida histórica para com eles. Fica uma questão em aberto: os avós de João Branco Sem Cota chegaram ao Brasil após a abolição da escravidão, e não participaram do sistema escravagista, foram explorados e hoje se juntaram aos milhões de excluídos brasileiros, de muitas procedências “raciais”. Qual a dívida de toda essa gente, boa parte da nossa nação, para com os afro-descendentes? Quer dizer que ALÉM DE EXCLUÍDOS, todos os milhões de brasileiros pobres que são descendentes de imigrantes devem ajudar a pagar uma dívida que não possuem? A dívida da nação é para com os excluídos em geral, e todos são vítimas de um processo histórico onde prevaleceu a exploração e a desigualdade social. E a atual desigualdade social não é fruto apenas de processos históricos, mas também de fatores bem atuais e atuantes... E cabe ao governo cumprir sua obrigação de oferecer melhores condições para os excluídos, seja eles afro-descendentes, euro-descendentes, ou de que procedência for.
Já pensou se os jornais europeus publicarem matérias com as seguintes chamadas: “euro-descendentes são excluídos no Brasil: o país resolveu pagar sua dívida com seus excluídos sociais, mas apenas com a população afro-descendente, os euro-descendentes, continuarão excluídos”. Por esse ponto de vista será que ninguém enxerga? Ou não convém? O que há por trás dessa preferência pelos excluídos negros e afro-descendentes? Tudo bem que para os negros e afro-descendentes, é algo que lhes convém, motivo pelo qual é compreensível que lutem por seus “direitos”, mas que fique claro que esses “direitos” são questionáveis, quando pautados no critério racial. É direito, quando considerando que são excluídos, tal qual os euro-descendentes ou “qualquer-outra-coisa-descendente”. Em se tratando, entretanto, de critério racial, então saibam os caros afro-descendentes, que estão a defender interesses e não direitos.
Enquanto isso, os filhos de João Branco Sem Cota catarão latinha como o pai, enfrentando a miséria, a humilhação e o preconceito, e deixarão de herança para seus rebentos, a exclusão social e a pele clara, como o pão e o leite que lhes falta... Justiça tem cor? Depende dos interesses políticos e econômicos em jogo... Brancos, negros ou índios, somos todos peças nesse jogo, meros peões no jogo do Poder.