As vozes antigas do progresso

Um passeio pelo Mercado Público de Porto Alegre é sempre uma aula prática de história, de sociabilidade, de cultura, de gastronomia. No último sábado, no segundo piso, fui dar uma olhada no Museu do Mercado.

Um salão bem organizado, com uma atendente/recepcionista por detrás de um balcão onde se pode comprar livros e lembranças sobre a cidade e o Mercado. Painéis pendurados no teto retratam a história dos mercados públicos no Brasil e, obviamente, do de Porto Alegre. O Mercado Público foi construído de 1864 a 1869 e, no ano do seu centenário, passava por um período difícil: com tantas construções sendo realizadas na capital dos gaúchos no início dos anos 70 do século passado visando modernizar a cidade, o Mercado Público, em precaríssimas condições, era alvo dos arautos da modernidade e do progre$$o de então, que propunham, cheios de argumentos técnicos, a sua demolição.

Dizia-se que o tipo de comércio ali efetivado estava obsoleto e anacrônico, que era lastimável a higiene do prédio. O novo pedia passagem ao velho ali parado, ocupando o $eu e$paço. Um dos painéis retrata bem o período, desde os argumentos e projetos iniciados em 1969 definindo a demolição do Mercado até a reação popular contra a mesma, que atingiu seu ápice em 1972.

Numa página de um jornal do referido ano ali reproduzida, manifestações de pessoas públicas da época, favoráveis e desfavoráveis a demolição; os primeiros desejando a modernidade e o progresso, os segundos as tradições e as lembranças. Depois de sair do Museu, sentei numa das mesinhas junto ao passeio público do segundo piso e, olhando para as bancas centenárias abaixo e para o povo fervilhando entre elas num sábado ensolarado, pensei no que diriam os que eram favoráveis se estivessem ali comigo, quarenta anos passados, tomando um café de aroma inebriante e convidativo, num dos lugares mais legais e modernos de Porto alegre? Isso mesmo, o Mercado Público, depois de revitalizado nos anos 90, é um dos lugares mais modernos da capital, aliando conceitos inovadores de arquitetura e urbanismo a um prédio antigo que, incrivelmente, ainda mantém a mesma função original (comércio), o que não é a regra nesses casos. A Casa de Cultura Mário Quintana, só para citar um exemplo análogo que confirma a regra, era o Hotel Majestic.

Daí inevitável não lembrar o prédio abandonado do Café Recreio & Baar Xarqueadas e bater novamente nessa tecla aqui. Charqueadas nasceu do rio. Em que outro lugar poderíamos fazer o moderno diálogo histórico-social da antiga com a nova urbe, um espaço atual de sociabilidade onde a cidade (e a sua gente) se encontraria consigo mesmo, com a sua identidade? A revitalização do espaço da orla do Rio Jacuí é algo que vai ter de ser feito, não poderemos deixá-la como está; tampouco poderemos continuar maltratando o rio. Uma coisa está ligada a outra. E o pequeno prédio abandonado é um pouco, para nós, creio, como o Mercado Público de Porto Alegre.
Muitas das grandes cidades do mundo mantém esse moderno diálogo incólume. O diretor americano Woody Allen, ao par com sua obsessão pela moderna New York, cenário de grande parte dos seus filmes, está ultimamente resgatando-as: Barcelona, Roma, Paris.

Que tal imaginarmos nós daqui a quarenta anos, com os futuros jovens e adultos, sentados no segundo piso do Recreio, admirando o povo fervilhando junto à orla revitalizada do Jacuí numa tarde agradável de primavera ou de verão, sorvendo um café de aroma inebriante? Para isso basta planejarmos o futuro da nossa identidade citadina concretizada em espaços físicos de sociabilidade que, ao contrário das pessoas, podem ser renovados.

Texto publicado em 27.11.2012 na seção de Opinião do Jornal Portal de Notícias.
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