A VIRGEM E O GOL – parte 2

Prosseguindo no assunto da terça passada, quando abordamos o entrelaçamento de dois fatos presentes na mídia (a virgem catarinense de 1.500.000 reais e o gol de mão do centroavante do Palmeiras) sob a luz (?) da hipócrita esquizofrenia de nossa sociedade no que tange ao campo de nossos valores sociais, vamos agora comentar o gol anulado de Barcos.

Barcos, um argentino, assim como o craque Diego Maradona, o “deus” hermano que, na Copa do Mundo de 1986, fez um gol com a mão contra a Inglaterra validado pelo juiz, que não viu o ladino artifício. Dieguito ainda ironizou sua malandragem, afirmando que aquela foi “a mão de Deus”. E aqui podemos dizer que os jogadores argentinos de “mão-grande” são um similar portenho da malandragem brasileira, do “gosto de levar vantagem em tudo” da “lei” de Gerson (na propaganda do cigarro Vila Rica, lembram?), outro boleiro, este da seleção brasileira tri campeã de 1970.

O inusitado do lance foi o Palmeiras indignar-se pela invalidação do gol irregular, corretamente anulado pelo árbitro. Motivo: o juiz, que num primeiro momento validou o gol, teria sido informado por alguém de fora do quarteto de arbitragem (juiz, bandeirinhas e quarto árbitro). O homem do apito negou, disse que foi o árbitro auxiliar que o informou da irregularidade. A justiça desportiva indeferiu a intenção palmeirense de anular a partida por 9x0, goleada.

Ora, se todo mundo viu a irregularidade, escancarada pela televisão, onde estava o pressuposto ético e moral do Palmeiras ao postular a validade do gol nos tribunais do futebol? Não estava. Não era essa a questão. O que valia era a brecha na lei, na regra, e a relação pragmática e instrumental que as pessoas estabelecem com os valores sociais. “Leve vantagem você também, certo?” Não importa se está certo ou não, importa é levar vantagem. Atleta fazendo propaganda de cigarro (e bebida alcoólica). Ganhar 1.500.00 reais. Valores monetários. Valor social é coisa para otários, diria um malandro ou um jogador simulando uma falta inexistente.
E o pior é que os torcedores do time beneficiado sempre apoiam atitudes assim: não importa se o pênalti não houve, se a falta foi simulada, se o gol foi com a mão ou em impedimento, se a bola entrou ou não. O que importa é a vitória. Pragmatismo social puro! E você que pensa exatamente assim quando é o seu time o beneficiado por um lance irregular não percebido pelo juiz é também um malandro que tem uma relação instrumental com os valores sociais: servem somente em seu benefício, do contrário, não.

Pois esse é o cerne da nossa hipocrisia esquizofrênica: defender os valores sociais de forma pragmática e instrumental, somente quando dizem respeito as atitudes públicas dos outros. Os filhos dos outros são maconheiros drogados, o meu é dependente químico; os filhos dos outros são ladrões, o meu é cleptomaníaco; a virgem catarinense é uma vadia, quem paga os serviços de uma prostituta está se divertindo; o centroavante do Palmeiras é sem vergonha, o centroavante do meu time é esperto.

E mais louco disso tudo que esse não é um processo individual, mas sim social! Algo que, em contraponto à “consciência social” definida por Durkheim, seria uma “inconsciência social”, não com características conceituais do inconsciente freudiano, mas sim de uma hipócrita esquizofrenia social, que, por um lado, é consciente da sua hipocrisia e, por outro, esquizofrênica, ao parecer integrar essa hipocrisia na vida social como se um valor social fosse.
Como fala a letra da canção de Humberto Gessinger: ‘Vou pagar pra ver a verdade a ver navios. Onde já se viu?”.


Texto publicado na página de Opinião do jornal Portal de Notícias.
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