Discurso de complexidade segundo Paulo Rangel...
Gosto de ler Paulo Rangel no jornal Público. Confesso, até já tenho tirado notas! Hoje, porém, leio e releio o seu artigo "Precisamos de discursos de complexidade" e fico na dúvida se este é um exercício de 'colossal' ironia.
Esclareço: a crónica de PR pretende fazer uma reflexão sobre duas intervenções desastradas, de duas figuras públicas, na televisão. Uma, Isabel Jonet, a outra, Mouraz Lopes.
Resumidamente - o resumo é meu - Isabel Jonet disse que se deve comer menos bifes, ou, se quiserem, actualizou a história do " se o povo não tem pão que coma brioche", mas ao contrário! Já Mouraz Ferreira diz ALEGADAMENTE que os magistrados têm de ser bem pagos, para não cederem a pressões, ou coisa que o valha.
Ora, se bem percebi, segundo os comentadores de um certo quadrante, a formulação feita pelas duas figuras terá sido "infeliz", mas, para Paulo Rangel, essa infelicidade, não ofusca a sua substância, que é da ordem do complexo. Diz ele e cito: «Os discursos de Mouraz Lopes e de Isabel Jonet são palavras de complexidade, qualquer que seja o juízo que sobre eles venha a emitir-se.» Bem, mas onde está então o busílis destas palavras de complexidade? Como é que um discurso complexo (apesar de infeliz, não esquecer) gera uma reação tão adversa por parte de quem o ouviu ou ouviu dizer? Vejam a explicação de PR: «A sociedade mediática e a esfera das redes sociais... empurram-nos ... para o simplismo da argumentação, para a boçalidade da expressão... para a tentação populista da deturpação do sentido e do contexto. » Quer dizer, quem ouviu não percebeu que o discurso era complexo. Quem ouviu é boçal e contagia de boçalidade mesmo aqueles que não são de todo boçais! E é a boçalidade promovida pelos meios de comunicação que leva os ignaros a nada ou pouco compreender ou, pior, a compreender mal discursos complexos de formulação infeliz. Ou seja, a responsabilidade das infelizes , porém complexas, palavras foi não de quem falou, mas de quem ouviu.
Mas, pode perguntar-se e eu respondo, como defende PR a complexidade das palavras de Jonet e Lopes? Dizendo «que são discursos contra corrente ... e, por isso, obrigam o ouvinte a parar para pensar.» Ah! Um momento, apesar dos pesares, o ouvinte ouve (claro!) as infelizes declarações e pára para pensar, dada a sua complexidade. Acontece é que o ouvinte desatou a vituperar Jonet e Lopes. Pelos vistos, nem parou, nem pensou... muito. O ouvinte tratou, sim, de dizer cobras e lagartos das prestigiadas figuras e pediu, peticionou, até, a demissão de Jonet do Banco Alimentar contra a Pobreza.
Vejamos. Pedir a demissão de Jonet do Banco Alimentar é dar uma importância ao infeliz discurso ( eu prefiro dizer ao discurso descuidado, não pensado, fútil, ligeiro, imponderado), importância essa que ele manifestamente não tem. Aquilo, o discurso, pareceu-me uma conversa de tias, a falar dos pobrezinhos, coitadinhos, que se habituaram a comer pão com fiambre e estão renitentes a voltar ao pão com manteiga, ou mesmo sem manteiga.
Não vejo neste discurso complexidade nenhuma. Todos os dias oiço discursos deste jaez, para, por exemplo, apontar o dedo aos que recebem o rendimento mínimo, MAS têm a lata de beber café e comer bolos nas esplanadas. Oiço também este tipo de complexidade discursiva (!), todos os dias, em conversas com colegas, do tipo, « já viram os telemóveis desta gente, que mal tem para comer?». Ou mesmo discursos da complexidade de um «eles não querem trabalho, querem é emprego», ou «querem é o subsídio de desemprego, porque trabalhar faz calos». Ora, eu também penso que neste momento de crise é preciso ajustar comportamentos. Há cuidados a ter. Mas falar como se o ideal fosse EMPOBRECER, não só não me parece complexo, como me parece, outrossim, paradoxal. Precisamos de empobrecer? Precisamos de ficar pobres? Não!! Precisamos de distribuir melhor os recursos económicos, precisamos de mudar comportamentos de consumo, para fazer face ao momento de crise, tendo em vista um regresso ao DESENVOLVIMENTO e à RIQUEZA! Não será? Depois, pergunto: as pessoas precisam que lhes digam para não consumir, porque não há dinheiro? Afinal o consumo não tem vindo em decréscimo acelerado? Quem precisa que Isabel Jonet lhes diga, « não podemos comer sempre bifes»? Jonet que continue a fazer o bom trabalho que tem feito no Banco Alimentar contra a Pobreza, mas que se abstenha de falar perante as câmaras sem se preparar devidamente ... é que, do outro lado, a "boçalidade do ouvinte" espreita!
Quanto a Lopes, pelos vistos a solução de Jonet - de não comer bifes - não se aplica. Ao que parece, e para continuar com a imagética alimentar (clép!), os magistrados têm de continuar a ter dinheiro para a mercearia gourmet, caso contrário, podem cair ALEGADAMENTE em tentação. Eu acredito - de parva que sou - que a maior parte dos magistrados, tal como os outros trabalhadores, aguentarão alguma austeridade e continuarão a ser íntegros. Não consta que a abstinência de bife cause acessos de falta de honestidade. Pelo menos àqueles que são e sempre foram honestos!
Gostava de terminar com uma citação de um excelente artigo, sobre ideologia, publicado há algum tempo, também, no Público. Mas o meu kindle ficou sem bateria! Recordo, porém, que nele se dizia que há alternativas à austeridade. Há, por exemplo, uma melhor distribuição da riqueza, para que, acrescento, todos possam comer, apesar da diferença das ementas e da qualidade da baixela.
A frugalidade, a que Jonet faz apelo, é algo a que os pobres estão habituados. É certo que estavam a começar a desabituar-se, mas ainda não lhe perderam o jeito... infelizmente! Eu pergunto é se aqueles para quem a palavra frugalidade é quase um sinónimo de comer com elegância ( o contrário da forma alarve que os "pobres" têm de se empanturrar) estão preparados para deixar a sua zona de conforto, isto é:
1- voltar à casa dos pais, porque não se conseguem alimentar por si
2- emigrar, sem rumo, sem certezas, para conseguir arranjar um emprego qualquer
3- ir à sopa dos pobres
4- dar água aos filhos, quando estes pedem pão (acontece na Grécia)
5- ir para a cama com fome (acontece em Portugal)
6- usufruir do Banco Alimentar, etc.
São apenas exemplos. Não quero puxar ao "ai coitadinhos, que somos tão desgraçadinhos", claro! Mas, com roupas de marca, casa elegante, nome sonante, berço, as necessidades básicas e as não básicas, as simbólicas, de cultura, por exemplo, satisfeitas, é fácil ter um discurso de complexidade. Embora de complexidade não tenha nada, pelo contrário. É o discurso do costume, a ideia muito complexa do «cada macaco no seu galho»!
Nota: quem se interessar pelo conceito de "pensamento complexo" pode ler "A Introdução ao pensamento complexo" de Edgar Morin