A virgem e o gol

Dois fatos estão continuamente presentes na mídia nacional nas últimas semanas: o leilão online da virgindade de uma jovem catarinense e o gol com a mão que um atacante argentino do Palmeiras fez em jogo contra o Internacional. Ambos estão mais entrelaçados do que aparentam: além de mexerem com sexo, futebol e dinheiro, aspectos importantes de nossa sociabilidade, eles convergem entre si na intersecção no campo dos valores sociais, com todo o tipo de perturbação que aí fazem diretamente (por serem fatos públicos e conscientes) e as contradições que indiretamente trazem à tona.

Não pretendo julgar a virgem e o atacante, mas sim analisar indivíduos que atuam dentro dos limites de uma estrutura social que é determinada inclusive por suas contradições e incoerências. Eles não criaram nada, mas sim jogaram com elementos presentes nesta estrutura. Também não existe necessidade de uma análise ética ou moral, visto que a própria repercussão negativa dos fatos mostra como a “consciência coletiva” (como Émile Durkheim a concebia) avalia majoritariamente os dois casos. Tampouco uma discussão jurídica seria interessante, visto que os assuntos estão, nesse aspecto, sendo alvo de disputas publicamente acompanhadas.

O que pode ser vendido e o que não pode na sociedade? Eis a questão fundamental que surge na intersecção dos fatos no campo dos valores sociais. Uma resposta simples para o caso específico: a dignidade e a honra, entendidas como o valor que possuem histórica e culturalmente em determinada sociedade. A repercussão pública demonstra que no caso em pauta o valor de ambas foi maculado em nossa sociedade. Pelo menos ao serem confrontadas publicamente e não somente de forma obscura, nos subterrâneos da vida social onde são tolerados pela hipocrisia esquizofrênica da sociedade que, contraditoriamente, precisa dessas válvulas de escape.
Como uma sociedade pode julgar o leilão de uma virgem se permite que a prostituição exista e que cumpra a “função social” (Durkheim novamente) de permitir a mercantilização do sexo como um fim em si? Contraditório, incoerente e louco isso! E, na impossibilidade de privar-se de tal julgamento, a sociedade acaba julgando a si mesma, mordendo o próprio rabo, que é o rabo do macaco que tenta se esconder com o rabo de fora.

Não que sociologicamente Catarina seja uma prostituta. Como é um ato isolado o que fará, visando retorno financeiro a sua pessoa mediante a satisfação do fetiche/tara de um japonês com R$ 1.500.000,00 sobrando para gastar com isso, ela está longe de cumprir a função social de uma prostituta: possibilitar continuamente o sexo por fora dos valores socialmente aceitos, democratizando-o como faz a Geni da canção do Chico Buarque (“de tudo que é nego torto do mangue e do cais do porto, ela já foi namorada; é rainha dos detentos, das loucas dos lazarentos, é de quem não tem mais nada”) ou então como a cinematográfica e “internética” Bruna Surfistinha, moça de classe média e de nível universitário que ganhava a vida acompanhado os moços da elite de nosso capitalismo. Em ambos os casos, a prostituição é um meio social para a sobrevivência e para o prazer, seja ele necessidade ou luxo.

E o gol irregular de Barcos e a “indignação” do seu clube pela não validade do mesmo? Aqui também estamos a falar da hipocrisia esquizofrênica da sociedade, que assim revela a relação pragmática e instrumental que as pessoas mantêm com os valores sociais, base das contradições e incoerências referidas acima. Semana que vem continuamos no assunto.


Artigo publicado no jornal Portal de Notícias em 06/11/2012.
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