Viver e pensar a cidade

Apenas dez segundos para atravessar a rua. É tudo o que o (bem vindo!) semáforo concede a quem pretender atravessar em qualquer ponto as avenidas 1º de Maio e Bento Gonçalves, no centro de Charqueadas. Pouco, muito pouco.

O que faz a gente que é pedestre concluir que quem determinou esse tempo não atravessa aquelas avenidas. Não passa por ali. Não fica nos bares situados naquele cruzamento observando as pessoas andando pelo centro num final de tarde, por exemplo. Só pode ser essa a explicação, pois, do contrário, teria se dado conta de que dez segundos é um tempo curto para um a pessoa jovem e carrasco para um idoso.

A ciclovia, num dia de semana, no início da manhã. Um dos mais úteis equipamentos públicos de Charqueadas. Serve como lazer, esporte e como alternativa segura de mobilidade urbana. Você passa por ali e repara que muitos dos trabalhadores que estão se deslocando de bicicleta para as empresas situadas pela ERS 401 não a utilizam. Preferem andar pelo acostamento da autoestrada ou pela rua ao lado da ciclovia. As pessoas que andam de carro devem ficar pensando o motivo disso acontecer, pois a ciclovia é para as bicicletas, ora bolas!

Então eu vos repondo: a ciclovia é um dos piores locais para andar de bicicleta em Charqueadas! Um projeto bem legal, de boa largura, devidamente iluminado e arborizado, tem um calçamento impróprio para quem pedala. Aqueles blocos, com o tempo, ficam irregulares entre si, desnivelados e para os ciclistas que, em sua maioria, utilizam bicicletas sem amortecedores dianteiros, tornam-se um grande incômodo com a trepidação da roda dianteira que vai até o ciclista via o garfo e o guidão. Quem anda de bicicleta sabe muito bem do considerável desconforto do qual estou falando. Quem não anda, não sabe disso.

Conclusão: quem projetou a ciclovia não pedala por aí, não utiliza a “magrela” como veículo para o transporte urbano. Se pedalasse nunca teria definido um calçamento tão inadequado ao veículo. É o mesmo que projetar uma rua de chão batido cheia de buracos e pedras para os carros. Os motoristas iriam detestar.

Os dois casos que mencionei revelam mais do que o pensamento carrocêntrico que obviamente está por trás dos fatos. Uma visão que prioriza apenas os veículos automotores na mobilidade urbana em detrimento de pedestres e ciclistas é uma parte do problema. O problema real é que, muitas vezes, quem pensa a cidade não vive a cidade. Porisso temos ideias tão boas como as supra citadas efetivadas de forma incorreta. São detalhes que fazem toda a diferença, detalhes comuns para quem vive a cidade e enigmas e pontos obscuros para quem a desconhece cotidianamente.

Muitas vezes o técnico ou burocrata que, com a melhor das intenções, pensa alternativas para a cidade, não vive a cidade. Logo, desconhece intimamente seus odores, sabores, sua gente, seus caminhos, atalhos e suas manias. E, então, ocorre um fato muito comum nas administrações modernas: a cabeça não está conectada ao corpo. Quem pensa e planeja, muito mais que afastado de quem executa os projetos, está desconectado de quem utiliza os serviços públicos.

Ou por acaso você acha que dez segundos é tempo suficiente e que o piso da ciclovia é o ideal? Eu poderia falar aqui de educação, segurança, cultura, de qualquer outra boa iniciativa pública em qualquer uma dessas áreas onde poderíamos observar o mesmo fenômeno. Não precisa, pois você, leitor, deve saber de alguma em sua cidade, você que a vive. O ideal é quem pensa e planeja a cidade procurar, pelo menos, conectar-se a quem vive a cidade ou, ele mesmo, viver a área da cidade pela qual trabalha.


Texto publicado hoje na seção de opinião do jornal Portal de Notícias.
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