AK-47: UM ÍCONE MOÇAMBICANO?
POR QUE TEMOS UMA AK-47 NOS NOSSOS SÍMBOLOS NACIONAIS?
A música passava na televisão. O coro: «Eu quero uma AKM! Eu quero uma AKM! PAH! Tiros na cabeça! Tiros na cabeça! …»
A primeira coisa que pensei foi: «Quem é que quer uma AKM? Quem é o idiota que enche os pulmões para cantar o seu fascínio por uma AKM?» Estúpido!? Até poderia ser, mas não o é. É um moçambicano. Explico-me: a arma é um símbolo da nossa República, ela figura na nossa bandeira e no nosso brasão. Concluindo, o fascínio (perverso) pela arma é produto do respeito destes símbolos nacionais, do respeito à constituição formulado no artigo 30.
A bandeira e o brasão
A bandeira moçambicana nem sempre foi a mesma, ela passou por diversas transfigurações ao longo do tempo. A primeira bandeira (1974/5) continha as tradicionais cores, mas não continha quaisquer imagens. A bandeira adoptada após a declaração da independência passou a incorporar cinco objectos, uma circunferência dentada, um livro, uma enxada, uma arma e uma estrela vermelha. Em 1983 a bandeira sofreu outra alteração: muda-se a disposição das listras, desaparece a circunferência dentada, surge um triangulo isósceles vermelho invertido (maçónico?) e a estrela torna-se maior e de cor amarela (dourada). A bandeira é a mesma até a actualidade.
O brasão da República foi estabelecido após a independência e é baseado nos elementos gráficos do antigo brasão de armas da União Soviética. Embora tenha sofrido melhoramentos gráficos, o actual emblema não difere do primeiro, senão nos dizeres da faixa vermelha, que de República Popular de Moçambique passou para República de Moçambique.
Analisando-se estes dois símbolos, salienta-se a arma, sim, uma AK-47. Tanto na bandeira como no emblema a arma simboliza a luta de resistência ao colonialismo, a Luta Armada de Libertação Nacional e a defesa da soberania.
AK-47 e AKM
AK-47 é sigla da denominação russa «Avtomat Kalashnikova 1947» (Arma Automática de Kalashnikov modelo de 1947). É um fuzil de assalto de calibre 7,62 x 39 mm criado por Mikhail Kalashnikov e produzido na União Soviética pela indústria estatal IZH logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A AK-47 surge da necessidade da extinta URSS de desenvolver uma arma poderosa como a MKb42 alemã e a M1 norte-americana. Concebida como uma arma única, capaz de 600 tiros p/min, tem alta reputação entre especialistas devido a sua resistência à água, areia e lama, bem como por sua manutenção simples.
A AKM («Avtomat Kalashnikova Modernizirovannyj» – Automática Kalashnikov Modernizada) é uma das inúmeras variantes da AK-47, é uma AK-47 aperfeiçoada. Foi adoptada oficialmente em 1959, apresentando uma nova coronha, um novo mecanismo do gatilho, e uma nova mira. Geralmente usa-se o termo AK-47 para se referir a todas as armas da família. Também é usado o termo “AK’s”.
Kalashnikov, o criador
Mikhail Timofeevich Kalashnikov nasceu em 10 de Novembro de 1919, na região de Altai, no sueste da Rússia. Recrutado para o Exército Vermelho em 1938 como motorista/mecânico de carros de combate, um ferimento conduziu-o ao hospital, período em que projectou a sua primeira metralhadora. Embora o seu primeiro desenho não tenha sido aprovado, Kalashnikov foi designado para trabalhar no Centro de Desenvolvimento Científico de Armas Leves da URSS. Neste centro, em 1944, fez os primeiros desenhos da arma que ostentaria o seu nome, mas só depois de 1947 é que a então baptizada “AK-47” viria a se tornar o fuzil de assalto padrão da infantaria soviética. Logo depois, retirou-se da vida militar.
Ao contrário do que se poderia pensar, Kalashnikov não ficou rico com a sua criação. A renda do homem que fez a arma mais famosa da história da humanidade provém do uso do seu nome numa marca de vodka. Entretanto, o Tenente-General “doutor honorário” em engenharia já recebeu mais de 10 condecorações, das quais se sublinham a ordem de ‘Herói da Rússia’, pela mão de Medvedev. Publicou as suas memórias no livro “Rajadas da História”.
Uma arma assassina
O neocolonialismo que se estabeleceu na Ásia e África desde o início do século XX, após a Segunda Guerra Mundial, foi uma oportunidade para os vendedores de armas, para a máfia, fazer uso do extenso arsenal armazenado na ex-República Soviética. Depois de se ter comprovado o sucesso da arma em Laos e Afeganistão, o negócio não parou. Segundo dados da NU, a AK-47 foi usada como principal arma nos conflitos de Angola, Argélia, Bósnia, Burundi, Caxemira, Camboja, Chechénia, Colômbia, Congo, Haiti, Libéria, Moçambique, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão e Uganda.
Libéria, Angola, Sudão e Moçambique foram os países da África que mais receberam carregamentos da AK-47, provenientes da Albânia, Egipto, Hungria, Alemanha e Bulgária. Segundo o Guinness – o livro dos recordes -, a AK-47 é a arma de fogo hoje mais usada no mundo. Uma em cada 5 no mundo é uma kalashnikov. Em suma, como diz Roberto Saviano, a AK-47 matou mais do que a bomba atómica de Hiroshima e Nagasáqui, mais do que o SIDA, mais do que a peste bubónica, mais do que a malária, mais do que todos os atentados fundamentalistas, mais do que o somatório dos mortos de todos os terramotos. Estima-se que a AK-47 tenha matado, pelo menos, 7 milhões de pessoas.
Por ser uma arma de ‘design’ e manuseio simples, indestrutível, de baixo custo de fabricação e aquisição, a AK-47 tornou-se na estrela de todos os líderes guerrilheiros, rebeldes, ditadores, radicais religiosos e ‘bosses’ do tráfico e da máfia da Ásia à América.
AK-47 nos símbolos
Moçambique é o único país do mundo, do mundo todo, que tem uma AK-47 na sua bandeira. Curiosamente, a metralhadora aparece também na bandeira do grupo reaccionário Hezbollah (“Exército de Deus”), num fundo vermelho e erguida por uma mão.
A AK-47 surge poderosa e visível no emblema de Moçambique, simbolizando de novo a luta armada e a defesa do país. Aparece visível, em forma de sombra cinzenta, no escudo nacional de Timor-Leste, aprovado em 2007. De regresso a África, é possível ver a AK-47 no brasão de armas do Zimbabwe, adoptado em 1981. Para este país irmão, a arma simboliza a luta pela paz e pela democracia. Existem ainda evidências de que ela esteja retratada nos emblemas do Burquina Faso, da guarda iraniana, da Fatah na Palestina e do MRTA do Perú.
AK-47 como símbolo – o que eles dizem
A AK-47 é considerada, por ser indestrutível, sinónimo de rebeldia. AK-47 é a arma com a qual Osama Bin Laden foi eternizado. No seu premiado livro – Gomorra, Roberto Saviano assegura que a arma é “um verdadeiro símbolo do liberalismo. Um ícone absoluto”; mas o inventor que emprestou o seu nome à arma disse: “Eu criei armas para a defesa das fronteiras”.
Podem ser encontrados na internet, de entre vários, dois sítios que analisam as bandeiras do mundo todo. Os sítios estabelecem uma espécie de ‘top’ em que as bandeiras recebem uma classificação. Moçambique está lá! Em um dos sites, num rol de 15 bandeiras consideras ridículas, a bandeira de Moçambique aparece no 6º lugar. Em outra lista, de 10 bandeiras, a de Moçambique aparece no 4º lugar. A justificação é óbvia, o que faz uma AK-47 numa bandeira nacional?
AK-47, símbolos, a mó da questão
Retomando o fio da meada, ouvir alguém a gritar «Eu quero uma AKM!» para dar alguns tiros na cabeça é muita imbecilidade. Trata-se de um hino de guerra? Não, é característico de alguém que ignora o que diz. Será que, de tanto ver os ‘cinzentinhos’ carregando a arma à tiracolo, deu-lhe uma vontade de chorar ao papá uma ‘AKM’?
A AK-47 foi usada nas duas guerras que ficarão na memória de todos, marcou (e ainda continua a marcar). A AK-47 alimentou as forças do conflito civil onde o país “seguiu por um calvário de tendências políticas”. Homens, mulheres, crianças e raparigas franzinas foram armadas e levadas ao mato. A AK-47 viria a se tornar um ícone do povo (e da nossa polícia). Essas são as razões que justificam a presença da arma na bandeira e no brasão de armas.
Um ícone do povo? Um ícone da nossa República? Por mais que a AK-47 tenha servido ao povo moçambicano (assim como serviu a muitos outros povos), isso não torna o instrumento de morte num ícone legítimo do povo. A AK-47 nem sequer é “Made in Mozambique”! Tão-pouco Africana! Sou da opinião de que, actualmente, não faz muito sentido (quase nenhum) termos a AK-47 nos nossos símbolos. Não mais temos que idolatrar esse símbolo de guerra, morte, terrorismo, banditismo, sovietismo… E dirão: “Que pessimista! A arma relembra o sangue derramado pela libertação da pátria, a vida dos que deram tudo pela nação, pela paz e pela democracia!” Sim, é verdade. Somos os únicos no mundo? Não!
Pontofinalizando: A AK-47 não é um ícone da nossa República e muito menos é digna de ser um dos objectos gráficos dos nossos símbolos (ou de qualquer outro país). Um arco, uma flecha, um escudo, umas penas, uma mamba, o litoral, etc.; tudo menos AK-47 nos nossos símbolos. Se vamos rever a Constituição, talvez fosse uma boa oportunidade para se rever essa questão. Assino!