Como Conservar o Casamento, sem amantes
A mulher se acorda com o cabelo desalinhado, a roupa do dia anterior ainda com cheiro de cozinha, que tresanda a cebola, alho, e fumaça do cozido que preparara. O marido se mexe, abre os olhos e vê a mulher se dirigir para a cozinha; ele olha ao lado, e tudo parece com as dezenas ou centenas de vezes que se repetem sem modificação: o guarda-roupa semi-aberto, as roupas jogadas a esmo, o espelho já manchado pela intempérie, o teto da casa marrom de sujo; o piso com as lajotas arranhadas. Para ele é mais um dia na rotina interminável que vem da poucos anos de casado. No dia anterior chegara do trabalho já tarde. Cansado, se esquecera de tomar banho; depois do jantar, assistira a algum programa de televisão, e, com a mesma roupa suada se deitara na cama. A mulher se aproxima, sente o cheiro nauseabundo de suor, e ele, o da mulher que vem com a mesma roupa do dia-a-dia, com o mesmo cheiro de sempre. Nesse cenário ele tenta uma relação; fracassa; a pobre mulher já está acostumada a isso, se vira para o lado e dorme...
No namoro tudo corria as mil maravilhas. Todas as noites ele chegava alinhado, com a melhor roupa bem passada, o cabelo no melhor estilo da época, os sapatos bem engraxados, as meias trocadas, a boca e os dentes higienizados. Ela o esperava sempre à porta da casa com a melhor roupa que tinha, perfumada, os cabelos lisos, soltos, exalavam um perfume que parecia ser arranjado só para ela; era bonita mesmo, e esse perfume tinha uma fragrância sensual que despertava o sexo do namorado. Os dias se passavam, e não havia um sequer que se repetisse; ela sempre dava um jeito de vir com outra roupa, um penteado diferente, os lábios carnudos pintados com uma cor que realçava ainda mais a sensualidade que era dela própria; saiam para dar algum passeio nas ruas do conjunto habitacional onde ela morava. Não pareciam duas pessoas que caminhavam; andavam tão colados que no escuro se confundiam com uma só pessoa. Ele tinha a impressão que não andava, parecia que deslizava num colchão de nuvens, tal era a felicidade que o arrastava para um mundo de fantasia que persistia mesmo durante o dia no duro trabalho que tinha no escritório. Por sua vez ela pensava que achara seu príncipe encantado: era um rapaz de corpo atlético, queixo másculo, cabelos lisos, olhos penetrantes, testa larga que parecia denotar algum talento; por outro lado ela era bonita, sensual, corpo bem feito, apetitoso, os lábios róseos e carnudos, os seios bem aprumados; o rosto aveludado e encimado por olhos meigos e brilhantes. Podia-se dizer que formavam um casal quase perfeito.
O casamento foi às pressas, pois a barriga respondeu à ardente chama do sexo e do amor que parecia que os ia unir para sempre. Veio o primeiro filho; já não andavam mais colados um ao outro como nos idílicos tempos de namoro. Depois, o segundo filho. Ele ficava atrás e ela seguia a frente com uma das crianças. O terceiro filho os afastou ainda mais. Ela dera um jeito no cabelo que mais parecia um cilindro cujo tamanho era o da própria cabeça. Deixara de usar o perfume da época do namoro; os vestidos estavam manchados de urina das crianças; não se pintava mais, e o perfume afrodisíaco foi substituído pelo cheiro de óleo de cozinha. Ele, por sua vez, andava de bermuda suja, os cabelos cheios de caspa, a cueca de dias, as axilas tresandavam o cheiro forte e azedo de suor represado. O sexo se tornara somente uma necessidade biológica, e não o prazer máximo de nossas vidas...
Então, por que não fazer do casamento um eterno namoro?