AH, ALTEZA!
Começa agora, bem de mansinho uma chuva no meu telhado. Sempre que chove me cubro de preocupações; não moro em área de risco, mas sou castigado severamente pelo medo do trovão. Bobagem. Se ouço o trovão é porque o perigo já passou.
Naquela tarde noite chovia. O anoitecer aumentava o risco não só para os que moravam nos morros e nos sítios ribeirinhos. Costumo dizer, sem que ninguém me conteste que as coisas desagradáveis e inusitadas acontecem sempre à noite. É à noite que o gás do fogão acaba; de preferência quando você está na metade do “mexidão”; o dente dói e não tem analgésico, só à noite. À noite é quando os filhos resolvem nascer; alta madrugada! Vai tudo muito bem e de repente:
“Bêêmnhêêê, estourou a bolsa!” - Corre daqui, corre dali, e o jeito é passar o resto da noite no hospital.
Ligaram não sei de onde. A comitiva de Sua Majestade Imperial seria pontual e já estava a caminho. Engoli o lanche e sai no galope. A recepção foi um ato inusitado. Motivação para impor contrafação numa situação política local. Uma pugna despropositada marcada pelo cerceamento de direitos básicos me jogou no colo aquele momento. Algumas linhas foram publicadas nos jornalões da capital. Tá bom, forçou a barra. Recebemos os herdeiros do trono!
Chovia fino. A preparação haveria que ser feita com presteza, embora rapidamente, para se evitar o cometimento de gafes. Há um jeito muito especial de se tratar com membros da realeza, dizia o Augusto Ferreira o anfitrião. Perfilhados no calçamento irregular do paço municipal o minguado destacamento policial repassava o “mise-em-scénes” pra não fazer feio.
D. Bragança espera com o olhar fixo no horizonte como se estivesse alheio ao mundo que lhe rodeava. Augusto desceu rápido, abriu a porta do veículo, curvou-se cerimoniosamente e se fez acompanhar de sua Alteza até onde a meia dúzia de milicianos aguardavam em posição de sentido, desconfiados daquilo tudo.
Ariel, como se estivesse a persignar-se elevou a mão à pala em sinal de respeitosa continência, saudou o herdeiro imperial apresentando-se e se colocando à disposição da comitiva.
D. Bragança estende a mão aos moldes do gestual das monarquias, talvez à espera do beijo do vassalo. Em forma de murmúrio, misto de educação refinada e distanciamento singular da pompa imperial provoca um inusitado desconforto de natureza semântica:
- Obrigado comandante, desejo boa sorte para o senhor e para sua tropa.
- Agradeço, meu príncipe, eu desejo o mesmo para a alteza do senhor também.
Em comitiva, depois de um discurso rebuscado de saudosismo e a expectação de um possível retorno aos lauréis de anteontem, fomos todos à recepção nas dependências do museu federal, nos fartar de bom vinho e vistoso repasto.
Abro os jornais e percebo hoje, no vórtice dessa chuvinha morrinhenta em minha janela, tal qual naquele dia, que toda a imprensa do país está deveras preocupada com a visita do Príncipe Harry às terras de D. Bragança. Policiais paramentados, holofotes e flashes insistentes, iluminam e incendeiam o sorriso amarelo de um inglês genuíno, de rosto vermelho e pele esbranquiçada. Longe de se vislumbrar no rosto do infante, uma beleza encantadora, tal a que se via no rosto gracioso de sua mãe, envolvida pela volúpia do mimetismo entre a frugalidade e a realeza plastificada. Por outro lado, e por sorte dele, não se escreve também em suas faces a estampa rabiscada do pai sempre com ares de quem está chupando limão galego, daqueles miudinhos que tinha no quintal da casa do Tiilton.
Não tenho a menor preocupação de acompanhar os fatos. Sequer me dá interesse em comparar as atitudes do herdeiro da coroa inglesa com as atitudes dos imperiais senhores de Bragança. Percebo hoje que a inusitada visita daquele distante momento chuvoso se repete rotineiramente na cidade, já que firmando-se num sentido sem sentido, germinou por aqui, uma célula de monarquistas emplumados. É coisa que não vinga. Não sai do broto, mas que é hilário é. Não menos hilário que o cordão de populares, moçoilas, crianças e curiosos que rodeiam o terceiro sardento na linha de sucessão do trono de Windsor. Harry subiu morro, Harry jogou bola nas areias cariocas, Harry participou de corrida no aterro, comeu churrasco no Pantanal, posou ao lado de autoridades, foi recebido por escolares de bandeirinha do Reino Unido, fãs de Harry fantasiados de membros da realeza, por fim, como não poderia deixar de ser, Harry foi jogar uma partida de pólo com seus “amigos”. O pólo é um esportezinho besta, coisa de ricos, que por preguiça ou comodidade, correm atrás de uma bolinha montados em cavalos de rabo empacotado.
O regime monárquico, a despeito do sonho da Imperial Família de Petrópolis, não foi de todo algo que atraiu muito nosso povo, ainda que em nosso meio existam os reis do futebol, do baião, as rainhas dos baixinhos e da pipoca. Mas, acho até que não sabemos muito bem o significado dessas metáforas não. O que mais me intriga, é que, não é incomum entre nós a expressão: “FULANO NÃO PASSA DE UMA RAINHA DA INGLATERRA!” num significado de que "fulano" não manda coisa nenhuma.
Em verdade, a monarquia inglesa, atualmente é mais o significado de um culto à tradição. Se por um lado, traz essa característica lúdica de emoções, não significa em efeito um governo de fato. Sabe-se que a monarquia inglesa é uma monarquia constitucional parlamentar onde o exercício do poder não está nas mãos do monarca, e tem limites na lei. Em suma a monarquia inglesa é bem um símbolo de poder.
Coisas que acontecem entre nós com importâncias significativas, por vezes não são noticiadas. O ex presidente Lula, no clímax de sua popularidade, disse que os atos de seu governo com certeza teriam muito mais destaque e repercussão na imprensa alienígena que na doméstica. Há razões para tanto? Falou-se muito mais de Harry, numa semana que do vazamento de óleo nas águas brasileiras, de responsabilidade de uma multinacional aí.
Que gosto, que razão, que motivos, que mística levam um bando de autoridades, um bando de pessoas do povo, que nem sabem de reis, rainhas e príncipes, a uma insistência exacerbada de uma mídia que zomba do país, que releva questões cruciais ao nada elevado a nada, a ficarem dias e dias com seus espaços todos tomados para definir o sorriso de Harry, discutir a cor da meia de Harry, se enfeitiçar com o beicinho de Harry, diagnosticar o cheiro do pum do Harry? Ora, a resposta não está muito longe daquilo que já se sentiu há tempos entre nós e que vem sendo uma prática aflitiva de nossa elite burguesa e metida a ativa, tão bem evidenciado por Nelson Rodrigues, o Anjo Pornográfico, a propósito, construída exatamente sobre um confronto futebolístico de nossa seleção com os súditos da rainha:
“Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade.”
Jamais foi tão evidente, e eu diria mesmo, espetacular o nosso "viralatismo" quando esse espetáculo de inocuidades toma o nosso dia a dia e transforma em celebridades nada mais que um simples traço de ácido desoxirribonucléico, nada mais que isso.
Vou dormir. Com essa chuvinha manhosa, essa noite chegando, e esse povo brincando de príncipe por aí, pode bem ser que algum Bragança me venha bater à janela, ou mesmo um sapo coaxe sob meu catre, pois, é sempre a noite que essas coisas nos convêm.