Polícia em paradoxo em tempos de greve
Lúcio Alves de Barros*
A greve dos policiais militares do estado da Bahia que se arrastou desde o dia 31 de janeiro traz para o debate velhas e novas questões. Talvez nem tão velhas e nem tão novas, dependendo - obviamente - do ponto de vista e de como se entende os limites e os condicionantes de um movimento grevista.
Em primeiro, a greve aponta para a velha questão de “quem vigia os vigilantes?”. Em geral, a preocupação neste terreno repousou sobre a violência policial, a corrupção e o poder discricionário do policial. Pouco ou nada se discute quando o assunto para uns não passa de “baderna”, “motim” e “crime”. De todo modo, a ideia de vigiar os vigilantes é importante uma vez que são eles os portadores de armas e que, de uma forma ou de outra, produzem o que os policiólogos chamam de “sensação de segurança”. Sem o controle, apesar de achar que este poderia ser feito pela polícia civil ou mesmo a federal (no caso o governo ainda tem a força nacional, criada na década de 90) a possibilidade de descontrole é certa, pois não acredito na existência de policiais treinados e capacitados em movimentos de grande monta e nas mais ou menos razoáveis técnicas de negociação sindical.
Em segundo, a greve nos ensina um pouco sobre o que é a polícia. A constituição de 1988 descreve com acuidade o seu trabalho. Trata-se de uma força ostensiva que tem o monopólio do policiamento ostensivo e fardado. Cumpre a ela a manutenção da ordem e da paz. Da teoria à prática a coisa muda de figura ao sabor de quem manda e de quem tem juízo para obedecer. Todavia, o policial possui o direito de greve? Neste campo, os policiais militares se apegam à condição de funcionários públicos do estado os quais tem esse direito garantido. A questão se torna preocupante porque, se os funcionários públicos entram em greve, especialmente os professores, logo são reprimidos pelos mesmos policiais que hoje utilizam da greve. Esta questão não deixa de estar relacionada à primeira, visto que para reprimir os policiais os estados da federação tem acionado o exército. Este foi o caso da greve dos policiais militares de Minas Gerais em 1997 e 2004.
Por último, é preciso chamar atenção para o número de homicídios e o aumento da chamada criminalidade, especialmente, na bela cidade de Salvador. Há tempos os cientistas sociais e criminólogos tem afirmado que não existe uma forte relação entre o aumento do contingente policial e a criminalidade. Dito de outra forma, o aumento de policiais patrulhando as ruas e distribuídos no território não garante necessariamente a diminuição da criminalidade e da violência. A ideia ganhou ressonância com as pesquisas norteamericanas as quais quando chegaram ao Brasil fizeram festa nos principais centros de pesquisa. E é óbvio o paradoxo, pois mesmo com tais pesquisas os municípios ainda criaram a guarda municipal (algumas com poder de fogo com armas letais) e não foram poucos os estados que aumentaram os efetivos da polícia militar e da polícia civil e, de quebra, ainda criaram uma figura fantasmagórica chamada agente penitenciário. O resultado, ainda carente de pesquisas aprofundadas, foi o aumento das prisões de “suspeitos” (notadamente gente pobre, negra e jovem) e, por consequência das penitenciárias. Logo, não é por acaso a tese da emergência de um Estado penal, perverso e leviano em plena “democracia”. No caso, a greve dos policiais militares baianos mostra de duas uma: (1) ou as pesquisas estavam equivocadas e apenas fizeram digressões a respeito do policiamento na tentativa de validar o que não passaram de conjecturas ou (2) a polícia baiana perdeu o controle do próprio movimento contribuindo direta ou indiretamente para a “onda de criminalidade”, vandalismo, crimes e violência que assolou o estado. Infelizmente não sobram muitas linhas para corroborar uma ou outra afirmação e prefiro deixar o leitor caminhar com os próprios neurônios.
Para finalizar, é bom perguntar sobre até que ponto os modelos de policiamento, levados a efeito através do policiamento comunitário, policiamento de resultados, UPPS, integração das ações policiais, valem de fato. Como tais técnicas de policiamento podem funcionar com policiais grevistas que na teoria deveriam ser da comunidade? Mais que isso, como pacificar áreas tomadas pelo tráfico, pelo extermínio e pela criminalidade com uma polícia que revela uma cara e mostra outra ao sabor dos ditames dos donos do poder ou da liderança na ocasião? O que tenho certeza é que jamais se gastou tanto em segurança pública nesse país. Muita gente se elegeu, se enriqueceu, ganhou promoções, foram agraciados com cargos públicos, prêmios e no vai e vem da ação policial, tudo terminou em pó e em uma verdade nua e crua: a polícia militar é uma instituição sem controle e os estados da federação não tem a mínima noção do seu poder e de sua capacidade discricionária de ação no interior e fora das organizações. Que paguem melhor os policiais e os bombeiros, que desmilitarizem as polícias para que façam suas greves no campo legal, mas que jamais se esqueçam da natureza do policiamento, da grandeza e da boniteza que é a função da manutenção da paz e da ordem em uma sociedade que realmente pretende ser democrática.
*Doutor em ciências humanas pela UFMG e organizador do livro “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006.