Duas formas de ver um mesmo fato

DUAS FORMAS DE VER UM MESMO FATO

Os filósofos do devir, considerados clássicos, eram mestres em profligar as idéias “imutáveis” dos sofistas, afirmando a diversidade das circunstâncias, do tipo “somos e não somos”, “vemos e não vemos”, e assim por diante. Para eles, tal qual a água de um rio, tudo era mudança. Hoje, é comum observar-se que, em muitas oportunidades, um mesmo incidente é capaz de ser observado por mais de um jeito. A história que trago hoje, aqui, é absolutamente verídica, ocorreu perto de nós, no século passado, talvez entre os anos de 1935 e 1955.

Os atores estão mortos, mas as testemunhas ainda estão aí, para atestar a realidade da ocorrência. Nesse contexto, contam que, numa determinada cidade grande de nosso interior, havia umz jovem senhora, dizem que bonita, elegante e conceituada, casada com um comerciante, de cujo matrimônio há três filhos registrados. Como o esposo, por necessidade de seu ofício (comércio de tecidos) viajava muito, pelo Brasil e Europa, a mulher arranjou um amante. Se fosse hoje, a permissividade, diria, “um namorado”.

Naquele tempo, namorado era uma coisa e amante era outra. Nas viagens do “cornélio” (descuidado), a “dama” (com “fogo no rabo”), botava o amante para dentro de casa (naquele tempo não havia motéis, no máximo rendez-vous, onde era impraticável levar uma “dama”), nas barbas dos filhos, parentes e vizinhos escandalizados. Como as famílias (do “cornélio” e do “ricardão”) se davam, as crianças brincavam juntas, as mulheres (a traidora e a traída) trocavam receitas de bolo e moldes de vestidos. Contam que iam juntos até ao cinema.

Esta “história de amor”, desenrolou-se por duas décadas. Quando as pelancas e a lei da gravidade entraram em cena, parece que o negócio amainou. O pobre “cornélio” morreu – ao que tudo indica – sem conhecer a extensão do dano. Segundo algumas “bocas-de-matildes” da cidade (onde pulula a fofoca desde aquela época), o filho mais jovem da “dama” seria do “furtivo”.

Mesmo assim, temendo alguma represália, o amante se mandou, indo morar longe: parece que no Rio. A pessoa que me narrou esta história, contou o final, quando, lá pelo fim dos anos 50, ambos viúvos e idosos, a “dama” e o amante, trocavam cartas de amor, numa demonstração bonita de que o sentimento que os uniu era algo além de uma mera aventura penetrativa.

Quando escrevi este parágrafo, dei uma risada: não se deve rir dos sentimentos dos outros, ainda mais de pessoas “finadas”, mas a desfaçatez, quando beira o ridículo, chega a ser engraçada. Depois das cartas, eles marcaram um encontro, em “campo neutro”, parece-me que numa estação de águas, em Santa Catarina.

O narrador, para enfatizar o espírito romântico do encontro, conta que a dama chegou até a fazer enxoval para o reencontro com o antigo amante. Quando a pessoa terminou de me contar o fato, eu não pude deixar de exarar um julgamento cruel: “que baita vadia!”. E diante da surpresa de quem contou a história, eu perguntei: “e se fosse contigo? e se ao invés de espectadora, a ‘dama’ estivesse dando para teu marido? verias na situação ‘uma história de amor?’ ou uma grande safadeza?”. A pessoa (uma senhora) sorriu, e disse que não tinha visto a coisa por esse lado. Mesmo a ética e a moral, dependendo de quem conta a história, podem ter essa ou aquela maneira de serem julgadas.

Foi quando se veio à cabeça a filosofia de Parmênides, Heráclito e seus contemporâneos.