Falar de Tijuaçu¹, em alguns aspectos, nos remete a história contada em filme de nome Narradores de Javé², pois o povo organizado daquela comunidade, descobre que a memória da sua gente e lugar poderia ser preservada se tivessem um patrimônio histórico de valor reconhecido, se tivessem um "documento científico". Por isso, decidem escrever a história da pequena cidade chamada Javé.
Tijuaçu também tem uma história contada e ouvida por seus moradores em sinal de resistência, orgulho e pertencimento. E foi numa roda grande de pessoas na manhã de 04 de dezembro de 2011 que ouvimos uma simples e constante contação sobre a origem de Tijuaçu. Foi como ouvir uma crônica de sofrimento, dor, coragem e vitória.
A narrativa falava-nos de três escravas fugidas de uma senzala localizada próxima de Salvador. Três mulheres que traziam apenas na bagagem a sede por liberdade. Mulheres distanciadas da terra deserta e infértil da escravidão, negras e resistentes que fizeram de seus passos a razão maior de viverem em dignidade. E assim, seguiram adiante deixando que a esperança as guiassem por aquele itinerário. A caminhada chega ao fim quando se encontram com a certeza de uma outra terra, uma “terra onde correr leite e mel” (Ex 3,8), em que pudessem pousar o cansaço e gerar seus descendentes.
O jovem filho daquela comunidade continua a história agora contando-nos apenas de uma mulher: Maria Rodrigues, conhecida por ali como Mariinha Rodrigues. Ela fora à única das três que permaneceu viva e presente na memória coletiva do povo de Tijuaçu, sendo responsável por gerar herdeiros nascidos de sua força, persistência e digna liberdade.
Ouvi-lo foi como ouvir o próprio canto dos negros gerados e vividos na liberdade. Foi o clamor de obstinação dizendo-nos que não sofreu abalos na compreensão de si próprio. Tijuaçu carrega o entendimento de pertença e de integração. Isso fica claro na cor da pele, na raça, no sentido de si mesmo, expressado na herança dos seus ancestrais. Essa consciência é significativa, pois revela um duplo deslocamento – situar-se em um grupo, compor um lugar, com elementos culturais, simbólicos e rítmicos próprios, no mundo social requer encontrar-se dentro de si mesmo superando uma crise de identidade. Uma crise que chega anunciada pela desastrosa ideologia do branqueamento.
É um povo que contempla o cerne do EU na essência de cada pessoa, no entanto, não com uma compreensão individualista ou auto-suficiente, mas num evento comunitário. Por isso, não se envergonha das marcas da raça negra e nem da comunidade em que constitui como fruto das relações com os outros, dessa forma, se mantêm fortes e vivos.
Com essa experiência, fica comprovada a presença do sentimento de orgulho que permeia as relações interativas, costurando o passado ao presente, vislumbrando o futuro. Há um contentamento conforme o grifo: “[...] sou negro e me glorifico deste nome; sou orgulhoso do sangue negro que corre em minhas veias [...]” (MUNANGA, 1988), que germina no interior e desabrocha no exterior no mundo da comunidade irmã. São serem que vivem a realidade pessoal na alegria de uma identidade una.
E aquela manhã de domingo chegou ao fim, mas antes refletimos, debatemos e dialogamos em torno dos ideários de negação e submissão para alcançar a certeza de que ser negro, ser negra, exige um ânimo descomedido. Pois, uma vez que há a aceitação de sua história e que já não há dor em reconhecer-se membro deste copo negro; vem o esforço para combater as barreiras discriminatórias auxiliando no desenvolvimento de um novo ser humano, capaz de se elevar à altura de seu destino numa sociedade de identidade plenamente unificada, completa e segura.
Assim, é Tijuaçu, um brado de resistência no chão árido do nosso sertão.
Legendas:
¹ Tijuaçu se localiza a 23 quilômetros do centro de Senhor do Bonfim, [...] estando este localizado no norte do estado da Bahia, na região denominada Piemonte da Diamantina. Situado na microrregião que leva o seu nome, dista 376 quilômetros da capital, Salvador. O município, entre os 15 mais populoso da Bahia, segundo o último censo divulgado pelo IBGE, é também centro importante da Região Piemonte da Diamantina, que conta com mais de 340 mil habitantes (MACHADO, et al, 2005, p. 13).
² Filme brasileiro (2003), dirigido por Eliane Caffé.
Referências:
MACHADO, Paulo Batista. Tijuaçu: uma resistência negra no semi-árido baiano. Paulo B. Machado, José de Santana Salgado, Miroslaw Kropidlowski, Valmir dos Santos. Senhor do Bonfim: 2005.
MUNANGA, Kabengele. Negritude – usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1988.
Imagem / Fonte: senhordobonfim.ba.gov.br
(Foto: Marcos Cesário)
Tijuaçu também tem uma história contada e ouvida por seus moradores em sinal de resistência, orgulho e pertencimento. E foi numa roda grande de pessoas na manhã de 04 de dezembro de 2011 que ouvimos uma simples e constante contação sobre a origem de Tijuaçu. Foi como ouvir uma crônica de sofrimento, dor, coragem e vitória.
A narrativa falava-nos de três escravas fugidas de uma senzala localizada próxima de Salvador. Três mulheres que traziam apenas na bagagem a sede por liberdade. Mulheres distanciadas da terra deserta e infértil da escravidão, negras e resistentes que fizeram de seus passos a razão maior de viverem em dignidade. E assim, seguiram adiante deixando que a esperança as guiassem por aquele itinerário. A caminhada chega ao fim quando se encontram com a certeza de uma outra terra, uma “terra onde correr leite e mel” (Ex 3,8), em que pudessem pousar o cansaço e gerar seus descendentes.
O jovem filho daquela comunidade continua a história agora contando-nos apenas de uma mulher: Maria Rodrigues, conhecida por ali como Mariinha Rodrigues. Ela fora à única das três que permaneceu viva e presente na memória coletiva do povo de Tijuaçu, sendo responsável por gerar herdeiros nascidos de sua força, persistência e digna liberdade.
Ouvi-lo foi como ouvir o próprio canto dos negros gerados e vividos na liberdade. Foi o clamor de obstinação dizendo-nos que não sofreu abalos na compreensão de si próprio. Tijuaçu carrega o entendimento de pertença e de integração. Isso fica claro na cor da pele, na raça, no sentido de si mesmo, expressado na herança dos seus ancestrais. Essa consciência é significativa, pois revela um duplo deslocamento – situar-se em um grupo, compor um lugar, com elementos culturais, simbólicos e rítmicos próprios, no mundo social requer encontrar-se dentro de si mesmo superando uma crise de identidade. Uma crise que chega anunciada pela desastrosa ideologia do branqueamento.
É um povo que contempla o cerne do EU na essência de cada pessoa, no entanto, não com uma compreensão individualista ou auto-suficiente, mas num evento comunitário. Por isso, não se envergonha das marcas da raça negra e nem da comunidade em que constitui como fruto das relações com os outros, dessa forma, se mantêm fortes e vivos.
Com essa experiência, fica comprovada a presença do sentimento de orgulho que permeia as relações interativas, costurando o passado ao presente, vislumbrando o futuro. Há um contentamento conforme o grifo: “[...] sou negro e me glorifico deste nome; sou orgulhoso do sangue negro que corre em minhas veias [...]” (MUNANGA, 1988), que germina no interior e desabrocha no exterior no mundo da comunidade irmã. São serem que vivem a realidade pessoal na alegria de uma identidade una.
E aquela manhã de domingo chegou ao fim, mas antes refletimos, debatemos e dialogamos em torno dos ideários de negação e submissão para alcançar a certeza de que ser negro, ser negra, exige um ânimo descomedido. Pois, uma vez que há a aceitação de sua história e que já não há dor em reconhecer-se membro deste copo negro; vem o esforço para combater as barreiras discriminatórias auxiliando no desenvolvimento de um novo ser humano, capaz de se elevar à altura de seu destino numa sociedade de identidade plenamente unificada, completa e segura.
Assim, é Tijuaçu, um brado de resistência no chão árido do nosso sertão.
Legendas:
¹ Tijuaçu se localiza a 23 quilômetros do centro de Senhor do Bonfim, [...] estando este localizado no norte do estado da Bahia, na região denominada Piemonte da Diamantina. Situado na microrregião que leva o seu nome, dista 376 quilômetros da capital, Salvador. O município, entre os 15 mais populoso da Bahia, segundo o último censo divulgado pelo IBGE, é também centro importante da Região Piemonte da Diamantina, que conta com mais de 340 mil habitantes (MACHADO, et al, 2005, p. 13).
² Filme brasileiro (2003), dirigido por Eliane Caffé.
Referências:
MACHADO, Paulo Batista. Tijuaçu: uma resistência negra no semi-árido baiano. Paulo B. Machado, José de Santana Salgado, Miroslaw Kropidlowski, Valmir dos Santos. Senhor do Bonfim: 2005.
MUNANGA, Kabengele. Negritude – usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1988.
Imagem / Fonte: senhordobonfim.ba.gov.br
(Foto: Marcos Cesário)