A polícia política e faxineira em Pinheirinho
Por Lúcio Alves de Barros*
"O país que não passa pelo momento de verdade em seu trânsito para a reconciliação e a democracia, lega ao futuro a permanência da barbárie do Estado" (Luiz Eduardo Soares).
É a mesma história de sempre neste Brasil de poucos. Poucos, inclusive, conscientes das crueldades que o Estado historicamente fez por aqui. Não é tampouco necessário remover toda história para delinear as falcatruas, crueldades, violências e leviandades que o Estado – pirateado de direito – fez e anda fazendo. Um livro didático é o suficiente para qualquer um tomar um pouco de ciência de muitas histórias obscuras e mal contadas. O que não deixa de ser curioso e paradoxal é a ação da polícia militar no caso de Pinheirinho (SP).
Neste sentido, nem vou discutir que o terreno pertence ao famigerado especulador financeiro Naji Nahas, o banqueiro investigado e temporariamente preso pela Polícia Federal naquela operação chamada Satiagraha. Até aí poucos problemas, mas o que teria acendido o estopim foi a necessidade do território para pagar dívidas e mais dívidas aos credores do criminoso endinheirado. Estes são alguns fatos que ainda não ficaram tão claros porque nada justifica uma ação policial depois de 08 anos de ocupação em que talvez meses de negociações resolvessem.
O inacreditável e paradoxal é a ação policial que já tomou repercussão internacional. No dia 22, domingo, pela manhã, a região de Pinherinho foi tomada pelo exército privado do Governador Geraldo Alckiman (PSDB) (lembrou Canudos). Dito de outra forma, a polícia militar de São Paulo colocou em desenvolvimento a operação de reintegração de posse com respaldo do judiciário e dos que comandam a força policial militar. No debate que se abriu, três pontos me parecem oportuno lembrar:
Em primeiro, o paradoxo em que nos metemos nos últimos anos. “Nunca na história deste país” se investiu tanto em segurança pública. Desde o final dos anos de 1980 vemos projetos e mais projetos de uma polícia chamada hoje de cidadã. O argumento é claro: com a democratização, materializada com a constituição de 1988, não caberia uma polícia violenta, autoritária e arbitrária. Ao contrário, abriu-se espaço para uma polícia comunitária, “de resultados”, “de solução de problemas” e que fosse capaz de aproximar da comunidade. Muitos projetos foram feitos, inclusive, o de integração das polícias militar e civil em certos estados. Aos poucos os intelectuais - até os denominados de "esquerda" - foram se vendendo e esqueceram que não existe esta ideia estapafúrdia de uma polícia tradicional e outra de polícia comunitária. A polícia é uma só e no Brasil ela reage no conforme “pode quem manda” e no "obedece quem tem juízo”. A verdade está aí, nua e crua. Tanto palavreado e dinheiro jogado fora, porque na hora do pau, a polícia deixa de ser comunitária, de proximidade, de amizade e de proteção e parte é para a porrada. Esta é a polícia que forjamos e é esta que aparece em casos nos quais deveria agir justamente ao contrário.
Um segundo ponto é o uso da Polícia Militar como faxineira social ou exército privado do Governador. Não era possível que depois de 08 anos outra possibilidade de negociação fosse levantada? A questão neste caso é política. A polícia é acionada ao sabor dos “donos do poder” e dos interesses em vigor. O Governador manda porque sabe da importância de um banqueiro em uma eleição e a polícia abaixa a cabeça e vai. Soltos, como sempre, eles atuam na discricionariedade e dá-lhe bala de borracha, bala sem borracha, bombas de gás e pancadas e prisões. Tudo isso por debaixo do manto da justiça “cega” que tem operado em um campo normativo que não suporta e parece desconhecer outras interpretações. A não ser aquela que a elite deseja fazer. Tal como o antigo ditado: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.
Por último, é inaceitável que nossa democracia não passe pelo privilégio do amadurecimento. Talvez nem seja possível chamar este estado de coisas de democracia. Já não sofremos tanto? A truculência, a impiedade, a violência da retomada de posse do território foi vexatória, arrogante, humilhante, sádica e perversa. Naquela manhã de domingo milhares de mulheres e homens (crianças, jovens e adultos), muitos nascidos em Pinheirinho, foram tomados de surpresa por carros blindados, helicópteros blindados e vários policiais armados da PMSP. A operação, revelada em tempo real por redes de TV e internet, mostrou a ação policial interditando as ruas, ferindo as pessoas, arrastando, batendo e maltratando homens e mulheres como se fossem animais e, por último aprisionado uma parte deles. A mídia se fartou, mas não deixou de veicular outros requintes da operação como o corte de água, de luz e telefone na região. Mais que isso, um cerco feroz foi formado e um campo de concentração de pessoas foi aberto para aqueles que não suportaram a repressão policial. O resultado foi dramático: as pessoas ficaram à deriva, estão vivendo de doações, humilhadas, cansadas e desesperadas. E tudo por uma ordem efêmera na qual a lei falou mais alto. Esta aí a polícia da “comunidade”, a “justiça cega”, célere e certa e o governo de resultados do PSDB.
Chega a ser inacreditável o rumo que tomou a retirada da população de Pinheirinho. É claro que casos mais ou menos parecidos acontecem por este Brasil de poucos. Mas quando ocorre em São Paulo o fenômeno toma uma ressonância que nos permite pelo menos indagar e ver a que ponto este país é desigual, grotesco e tenebroso. Já se sabe que a democracia é um longo caminho e que estamos a passos lentos. Mas ela não é possível em um estado de guerra que produz medo, barbárie, corrupção, incerteza, insegurança e mal-estar. A polícia, principalmente a militar, é a face visível do Estado e por isso passível de maiores críticas, mas é ela que vem mostrando o estado de barbárie em que nos encontramos. O Estado, tantas vezes leviano, mostra sua competência justamente contra as pessoas que mais precisam e, historicamente, nesse campo estão não somente os “invasores de terra”, mas os “sem terá”, os desviantes de toda hora, os denominados delinquentes, os usuários de crack ou simplesmente a gente pobre, negra e indefesa que faz parte da maioria da população deste país.
*Professor na Faculdade de Educação (FAE/BH) da UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais), doutor em ciências humanas pela UFMG e organizador dos livros, “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e “Mulher, política e sociedade”. Belo Horizonte / Brumadinho: Ed. ASA, 2009.