Polícia faxineira
Por Lúcio Alves de Barros*
Em tempos de liberação de possibilidades de estupro em plena TV é melancólico ver passar em branco debates sérios e muito mais complexos que vem ocorrendo há anos nesse país. A ostensividade do crack em todo território nacional só pode ser comparado com sua antítese, a força repressiva do Estado. Um triste paradoxo, haja vista que o crack, apesar dos olhos tortos das autoridades, já se tornou uma epidemia.
Sabemos que o governo federal somente há poucos meses liberou verbas para a implantação de um “plano nacional” no intuito de enfrentar o avanço do crack. O pacote governamental chega a prever (sempre previsões) investimentos de R$ 4 bilhões. No papel as velhas e conhecidas indicações: investimento na saúde, na justiça e na educação. Como já se sabe: da teoria à prática existe um longo caminho e no cansaço do caminhar volta-se para a penalização das práticas “desviantes”. Penalização sem muita sofisticação: solta-se a polícia e deixe que ela faça o “trabalho” de costume. O tiro no pé é inevitável e com ele os equívocos.
Em primeiro, o caso de São Paulo é emblemático. Na tentativa de conter o desenvolvimento da chamada cracolândia, o governador Geraldo Alckiman (PSDB), chefe maior das polícias militar e civil determinou “operações” nos locais nos quais se percebam “aglomerados” de dependentes. A primeira ação repressiva teve requintes de crueldade e violência com balas de borracha e bombas de efeito moral. O objetivo aparentemente era muito claro: “limpar a área”, “dispersar os usuários”, “reprimir o consumo e o tráfico”. A operação de ridícula passou a ser dramática, pois as imagens não deixam dúvida. Policias atiram, os usuários correm, até tentam alguma reação e depois se aglomeram em outro lugar. É o velho conto já famoso na história da polícia: diante dos desviados, delinquentes e “criminosos” nada como chamar a polícia, notadamente a militar, para solucionar o problema a priori sem solução.
A questão, por natureza, é mais complexa e tenho certeza que as autoridades sabem disso. Estão lidando com verdadeiros “zumbis”. Já se sabe que o crack atua rapidamente no sistema nervoso central e libera no cérebro a dopamina, uma substância neurotransmissora de prazer e que leva a maior parte dos usuários a uma dependência aguda e severa. Neste caso é burrice levar a polícia a cumprir ações de repressão. O que se passou na ocupação de “território” paulista foi a velha novela de viaturas e policias atirando em um grupo de “mortos vivos” que corriam sem saber para onde. No meio deste, obviamente, quem deveria ser preso não foi encontrado, o traficante. Muitos traficantes também são usuários. O crack é uma droga barata (cerca de 5 a 10 reais dependendo do tamanho) e fácil de encontrar, mas neste episódio valeria à pena ações investigativas no intuito de buscar o verdadeiro infrator. No mercado das drogas, qualquer uma delas, é necessária a demanda e - por definição - a oferta. Neste sentido, as armas governamentais seriam muito mais eficazes na investigação do que na repressão pura e simples.
Um segundo ponto a ser levantado é se realmente o caso pode ser considerado de polícia ostensiva. O uso de alguns entorpecentes é crime. Logo, compete ao policial militar apreender o cidadão e levá-lo à delegacia. Uma ação quase pedagógica, comunitária e certamente sem conflitos. São mínimas as possibilidades de um usuário de crack ser violento diante da força física de quatro ou mais policiais. Os acontecimentos, entretanto, seguiram outro caminho. A polícia novamente foi utilizada como “faxineira social” e, apesar de todos os projetos (a maioria paga com dinheiro público) - sobre polícia comunitária, de proximidade, de solução de problemas - ela apareceu como historicamente aparece no teatro de operações: como a polícia de costumes, repressiva e onipotente. A ação na cracolândia de São Paulo e que não deve demorar muito para ser repetida em outras cidades é problema de segurança pública, mas não de segurança nacional. O inimigo neste caso já está abatido e espera-se que a polícia faça por onde no intuito de ser digna de ser denominada polícia cidadã.
Por último, para não viciar o leitor, é necessário frisar que o problema passa longe de ser policial. Em maltrapilhos, se arrastando pelas ruas, em farrapos, solitários e jogados pelas calçadas vemos os usuários de crack desde o final da década de 1980 e início do decênio de 1990. As leis se afrouxaram, mas a cocaína em pasta base entra pelo país pelos mesmos lugares, a saúde pública continua em crise e a educação é um caos. Duas saídas são possíveis: ao invés de formação jurídica, defendida nas academias de polícia pelo país afora, seria bom policiais capacitados nas artes médicas no intuito de fazer o que os órgãos governamentais ligados ao Ministério da Saúde historicamente deixaram de fazer. Neste caso teríamos policiais atendendo gente como gente, como humanos e não como zumbis em filmes norte americanos. A segunda é clara e talvez custe muito mais barato ao governo: uma polícia pedagógica, assessorada por assistentes sociais, professores, pesquisadores, profissionais da saúde comprometidos com a solução ou amenização do problema.
O debate é amplo e carrega uma certeza: o crack é problema de justiça e sua amplitude é de difícil mensuração, visto que toca a esfera da justiça social. Os filhos do crack nasceram e cresceram ao lado do descaso do poder público. Vimos a criança nascer, aprender e amadurecer. A repressão e a punição não foram suficientes e não vão ser porque outrora já foram tentadas. A hora é de cuidado e proteção do usuário. É preciso recusar a entendê-lo como lixo, como problema de polícia e criminal e é de causar estranheza as autoridades e pessoas influentes bradando nos meios de comunicação a necessidade de castigos sem mesmo saber que o sofrimento imposto produz mais sofrimento. O problema do crack é de política pública e isso envolve interesses e medidas que vão além daquelas que o governo está tomando, pois sequer temos a ciência do número exato de usuários (dependentes e ocasionais). A polícia militar tem sua responsabilidade e lugar, como também tem a polícia civil, as autoridades que compõem o judiciário, o covarde do poder legislativo, o Ministério Público e todos aqueles que fazem do seu “ganha pão” estudos no campo da segurança pública. Finalmente, mais do que policiais em campo atirando no “inimigo” precisamos de vergonha na cara, seriedade, cuidado com o dinheiro público e investimentos e medidas certeiras em favor do dependente, pois ele não espera. Ele necessita e não é do “braço armado” do Estado, mas de mãos que possam pelo menos lhe apontar outro caminho.
*Professor na Faculdade de Educação (FAE/BH) da UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais), doutor em ciências humanas pela UFMG e organizador dos livros, “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e “Mulher, política e sociedade”. Belo Horizonte / Brumadinho: Ed. ASA, 2009.