HISTÓRIAS DE BOM CONSELHO-PE

Por Carlos Sena


 
Estou em Bom Conselho, minha terra. A cidade está cheia de turistas domésticos que nesses últimos janeiros vêm em revoadas recarregar as baterias na “terrinha”. Por onde a gente anda – mesmas ladeiras, mesmas ruas, mesma praça, mesmo banco e mesmo jardim. Tudo mais ou menos igual como nos tempos do São Geraldo, do Colégio das Freiras, dos “assustados”, dos bailes no Clube dos Trinta, da troça carnavalesca Turma do Funil, do Paga Nada, das Moreninhas, Bola de Ouro, etc... Do lança perfume, do Corso pelas ruas, do sax de Zé Puluca. Seu Lunga daquela época era o nosso Zé Bia, com suas tiradas geniais.

Igual, Bom Conselho continua enquanto cenário de uma geração que era feliz e sabia; que curtia serenata; que cantava Roberto Carlos, Renato e seus Blue CAPS, The Pops, etc., que usava calça boca sino, sapatos “cavalo de aço”, tomava Rum com Coca; que estudava geralmente até o então “ginasial”, para depois partir em revoada para cursar o científico ou o Clássico em Garanhuns e Recife e depois se doutorarem nas mais renomadas universidades do Brasil. Se permanece igual enquanto “útero” de tantos filhos ilustres, nossa terra, hoje, padece dos males da modernidade em sua pior tradução: crack, cola, juventude meio sem objetivo, trânsito louco, carros de som nos últimos decibéis, motos sem regulamentação, ruas esburacadas sem sinalização. O sinal maior de que nossa terra se entregou ao progresso é a presença de Lan Houses em cada esquina, de botecos, de espetinhos, de jovens em permanente dor de ouvido, por conta do celular que não desgruda da audição...

A cidade está com clima de festa. Mas não há decoração nas ruas, nem faixas dando boas vindas (vi umazinha na Rua Sete). A Programação foi montada em função um pouco das idades dos que aqui advêm para “recarregar as baterias”. Isto significa dizer que a grande maioria dos conterrâneos aportados beiram os quarenta anos, mas sem juros nem correção. O melhor dessa festa não está no roteiro oficial. Esse está bem ao gosto: tradicionais serestas, com baile no Clube dos Tinta, feijoada, passeio  ecológico, lançamento de livros, etc. O melhor da festa messssmo é o encontro na praça principal da cidade, tendo a linda matriz como testemunha. Ainda ontem, quando aguardava a chegada da serenata deambulante, pudemos observar o frenesi dos velhos amigos e eternos companheiros. Abraços, conversas que não acabam nunca, devido ao represamento das novidades. O que parece ser comum a grande maioria são os cabelos brancos e a face já meio salpicada pelo tempo. Num pequeno momento em que lá estivemos, vimos Hildete Santana – elegante e muito simpática e, como sempre, inteligente em seus pontos de vista. Estava lá com seu marido e um dos filhos. Encontramos com Pera Lúcia, com Deusdete, Alexandre de Juarez, Beta de Duquinha, Geraldo Grade, Tonho Coquita, Nice e Duênio, com Luiz Clério, Saulo, José Milton, a prefeita Judith, Quitéria (minha colega de turma), Ana Luna, Etiene. Afora estes, outros apenas vimos de longe, pois eram muitos os amigos que estavam por ali trocando afetos contidos, aureolados pela  distancia e pelo tempo. Nesse entremeio, Pera Lucia, como sempre serelepe, me pergunta se eu me lembro de Denise de Seu Florisbelo. Nisto, a própria Denise se aproxima e... Meio sem me conhecer... Disse que me conhecia, mas ainda  hesitante. Pelo sim pelo não a fiz lembrar-se do episódio que narrarei. Antes que lhe falasse tudo, ela já ria pra valer lembrando-se do fato como o fato foi. Tratou-se do seguinte: certo dia, num show no auditório do Ginásio São Geraldo, o locutor Ricardo Trajano anunciou Denise que, segundo ele, iria cantar. “E com vocês, DENISE, que irá cantar...” Nesse instante, Denise não entrou e ficou na coxia fazendo sinal pra ele que não iria cantar, mas DUBLAR. Então Ricardo não titubeou: “e com vocês, Denise que ira cantar DUBLAR”! O auditório veio abaixo de tanto riso, mas Denise dublou (e eu me lembro como se fosse hoje) uma música de Wanderléia... Fiquei feliz ao relembrar essa história com a própria protagonista. Denise estava ótima, bem humorada como sempre e bem acompanhada pelo seu marido que residem em Curitiba.

Deixei a Praça da Matriz e fui para  minha modesta casa situada no alto do colégio, na frente da prefeitura. Fui tomado por uma grata lembrança do meu eterno Adnísio Padilha. Não me sai da memória suas peripécias cheias de bom humor como uma das que ele sempre fazia: certo dia, logo cedo, Adnísio mandou um colega nosso (não cito o nome porque não sei se ele gostará) ir ver se ele (Adnísio) estava na ponte. Ele foi e voltou dizendo sem temor: Seu Adnísio, Seu Adnísio, o Sr. não tá lá não! Chico Padilha  e demais colegas nossos sabem de quem estou falando. Outra de Adnísio foi com Zé Maria – um garoto chatinho sempre vivia por perto fugindo dos cuidados da avó. Adnísio pra se livrar um pouco de Zé Maria, olhou pra baixo da rua e disse: “Zé Maria, vai pra casa que lá vem o véio”! E o garoto ficou por ali meio na espreita. Quem vinha lá de baixo era Louredo que, embora fraco de feição não era velho. Quando Louredo vai passando perto da janela em que Adnísio se encontrava, Zé Maria olhou pra ele e disse: “Seu Adnísio, Seu Adnísio, eu não tenho medo desse véio. Louredo olhou dos lados, mas seguiu sem entender bulhufas. Outra de Adnísio foi quando um tal de Zé Grandão (salvo engano) lhe irritou bastante. Eis o caso: estava Adnísio no Cine Brasília, num daqueles dias de reprise em que o cinema fica meio vazio. Entra Zé Grandão e dá uma volta no cinema. Dá outra volta no cinema e mais outra, procurando um lugar pra sentar, como se o cinema não estivesse vazio. Sabem onde ele foi sentar? Juto do meu amigo Adnísio. Sentou-se, olhou dos lados meio como cachorro que cai de mudança e... Não deu outra. Deu um peido podre, daqueles que a gente manda encomendar a alma porque o corpo já morreu. Diante da podridão que assolava, Zé Grandão olha pra Adnísio e vai logo dizendo: “não fui eu, não fui eu”. – Então fui eu, seu bosta. Então fui eu? Saia daqui se não eu lhe dou uma... (pelo que eu conheci ele dava mesmo uma porrada). Zé Grandão, do alto dos seus quase dois metro, todo desengonçado, saiu de mansinho e não se sabe até hoje se foi peidar noutra freguesia ou se permaneceu no cinema vendendo perfume de urubu a granel. Infelizmente meu amigo Adnísio se foi pro outro lado da eternidade. Foi se encontrar com o grande amor da sua vida – minha também amiga Lourdes Padilha Miranda... Quem os conheceu como eu, certamente aprova que eles dois se amaram de verdade! Noutra oportunidade, talvez eu conte mais histórias de Adnísio e minhas também, posto que sempre coadjuvei essas histórias.

Pois é. Coisas do coração requerem retorno ao passado. Não em forma de presa dele, mas de libertação com ele a tiracolo. A nossa festa em todos esses janeiros tem sido meio assim. A gente se encontra, se sabe, se abraça, se dilui, se esvai, se restabelece nos sentimentos,  se monta no trem azul e segue cada um rumo ao destino que escolheu. O bom Bom-conselhense não escolhe ser escolha do destino. Ele sai daqui como se soubesse onde o seu futuro se esconde. Regata ele, reprocessa e dá o tom da vida que escolheu pra si e pra sua família. Eu escolhi Recife. Morei em Brasília, conheci o país inteiro e até para o exterior já fui. Mas aqui é o meu lugar até um dia, até talvez, até... Certo dia, em plena UNB, proferindo  uma palestra, lembrei-me disto... Era minha Gestalt existencial se fechando.