O MANGAL DO PATESCO
                                            Sérgio Martins Pandolfo* 
 
   Há certos fatos que vivenciamos ao longo da vida que ficam marcados de forma indelével, em nossas mentes. Reminiscências que se nos afloram de quando em quando de coisas fundamente arquivadas nos escaninhos da memória. Entre tantos outros lembramo-nos de lugares, costumes e tipicidades desta Belém já prestes a virar quatrocentona que nos acudiu ao fazermos uma rememoração, com amigos coevos, de episódios passados, vividos, que já não voltam. Estávamos aí pela altura da década de 1950 a primórdios da de 60 e como todo jovem sadio e de bem com a vida e com as obrigações escolares, gostávamos – e muito! – de uma boa farra nos finais de semana. Íamos, quase sempre às sextas-feiras, a uma das tantas festas dançantes que se realizavam pelos quarteirões arrabaldeiros desta “cidade morena” e no sábado pela manhã cedinho, após tomarmos uma revigorante cuia de tacacá bem quente e traçarmos umas tapioquinhas molhadas no Ver-o-Peso, pegávamos o “Almirante Alexandrino” de evocativa memória e nos mandávamos para Mosqueiro a curtir a ressaca nas praias daquela “bucólica” ilha, como a etiquetou o Pierre, de lá só regressando no domingo à tardinha. Naqueles idos, de insubsistentes meios de comunicação, nossa mãe ficava pressurosa e angustiada, sem saber, às vezes, por onde andávamos, por isso que cremos esteja ela a gozar as delícias do Reino Celestial, tais as inquietudes que involuntariamente lhe causamos. Tempos saudosos, gloriosos, esplendorosos,
   Mas queremos aqui deixar registrada uma faceta desta saudosa Belém doutrora, que curtíamos a não mais poder pelo geral às sextas-feiras, antes de ganharmos o mundo nos tantos furdunços desta festeira urbe. Havia na Praça da Condor (Princesa Isabel), uma tasca de venda do bom e saudável caranguejo toc-toc, à moda parauara, que exibia o sugestivo nome de Mangal do Patesco. Situava-se mesmo na praça, confronte ao “monumental” Palácio dos Bares, ou simplesmente Bar da Condor, de propriedade de João de Barros, apregoado  "rei da noite", onde o Erasto Banhos (que nos programas de auditório da TV Marajoara era o palhaço "Alecrim"), com voz cerimoniosa e empostada anunciava, a intervalos, o ingresso dos frequentadores mais notórios e assíduos, mais ou menos assim: “Acaba de adentrar no recinto desta casa o Dr. Fulano de Tal, que se faz acompanhar das finas senhorinhas Fulana e Sicrana, a quem damos as nossas boas-vindas e apresentamos nossos cumprimentos”.
   A tasca do Patesco ficava a bem dizer somente com a frontaria de madeira fincada no chão da praça, pois que o corpo do casebre, em cujo interior dispunham-se os conjuntos de mesas e cadeiras firmava-se sobre estacas fincadas no fundo das águas da baía do Guajará, onde seu proprietário, por meio de uma cercadura, estabeleceu seu próprio criatório do gostoso crustáceo (daí o “mangal”), de tal sorte que lhe bastava descer uma vara com o puçá para apanhar os rubicundos uçás que, após rápida, mas hábil limpeza com vassourinha eram lançados ao caldeirão com água permanentemente a ferver, a fim de atender aos pedidos dos fregueses. Àquela época os “carangos” eram grandes e carnudos, bem diferentes dos de hoje, jitinhos e descarnados, e nos meses sem erre, quando se punham gordos, constituíam-se em manjar supimpa que fazia a fama do Mangal.
   Contudo, o pitoresco mesmo dessa história é que na birosca do Patesco havia um enorme e obeso carneiro branco que, como os fregueses, apreciava, ou melhor, deliciava-se com uma “loura gelada”, que ele sorvia em fartos goles nos copos oferecidos pelos fregueses da casa. O lanoso ovino também era chegado a pitar um cigarrinho (dos legais, é claro), do qual chupava o fumo e soltava em fartas baforadas. Assim, quando chegávamos mais tarde, aí pelas madrugadas, o pacato animal, já às quedas, esperava-nos para mais uma etílica (e fumacenta) sessão boêmia.
   É isso, amigos. A saudade dói e, às vezes, mata. A replicar as filosófico-poéticas palavras de Neruda: “A saudade é solidão acompanhada (...) é amar um passado que ainda não passou, é recusar um presente que nos machuca (...) saudade é sentir que existe o que não existe mais”.
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*Médico e escritor. ABRAMES/SOBRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 12/01/2012
Reeditado em 14/01/2012
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