A COMPREENSÃO DO HOMEM NO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE

Em 1943 foi publicado um livro de Gilberto Freyre que leva o título Na Bahia em 1943. Este livro tem uma história interessante. Gilberto Freyre estava sofrendo uns agravos no Recife por parte de membros do Governo. Foi então convidado por estudantes da Bahia para proferir palestras em Salvador, num gesto de desagravo. Atendendo ao convite, Gilberto pronunciou duas conferências. A primeira, Em torno de uma classificação sociológica; a segunda, A propósito da filosofia social e suas relações com a sociologia histórica. Estas conferências, juntamente com os discursos que acompanham a visita de Gilberto Freyre à Bahia, formam o livro Na Bahia em 1943. Quando este livro foi publicado, e começou a ser distribuído no Recife, o Governo do Estado mandou que fosse recolhido e jogado ao Rio Capibaribe, ou queimado. Por isto, a obra se tornou rara, e seu conteúdo pouco conhecido. Felizmente estas conferências na Bahia, juntamente com os outros textos não muito conhecidos de Gilberto Freyre, entretanto, receberam novas edições, e hoje são de fácil acesso.

Mas, qual é a relação do livro Na Bahia em 1943 com a compreensão do homem? Analiso as conferências deste livro porque nelas Gilberto Freyre enunciou elementos fundamentais de sua compreensão do homem. Recolhendo a doutrina que ele expressa ali sobre o homem, chegaremos a alguns dos parâmetros fundamentais que sempre foram o horizonte de sua visão do homem. À base destes textos, verificamos que Gilberto Freyre, em sua busca constante para compreender o homem, recorreu a conceitos da antropologia física, cultural e filosófica.

Como preâmbulo da análise da compreensão freyreana do homem, é bom lembrar que Gilberto se autodefine como escritor. O restante de sua criatividade estaria em função desta sua atividade, a ponto de ele mesmo afirmar que não é sociólogo, nem antropólogo, nem filósofo, mas escritor. Contudo, como escritor, não pretende apenas expor ideias abstratas, mas ideias com mãos e pés. Isto é, não ideias desenraizadas, mas ideias concretas de um escritor situado. Por isto, quando fala do ser humano, ele se refere primordialmente ao homem concreto, e não ao homem abstrato de uma filosofia de essências. O homem de Gilberto Freyre é o homem situado, o homem da morenidade brasileira, o novo homem dos trópicos. Contudo, embora centrado no homem concreto e situado, Gilberto não deixa de incorporar em seu pensamento os fundamentos essenciais da antropologia filosófica.

Em sua conferência Em torno de uma classificação sociológica, Gilberto constrói os seus argumentos de interpretação a partir de uma interessante classificação sociopsicológica dos tipos humanos, que ele busca no sociólogo norteamericcano Thomas. Não é que ele concorde com tudo que Thomas diz, mas a classificação de Thomas lhe serve de base para uma série de considerações antropológicas. Com base na tipologia de Thomas, Gilberto afirma que “em todas as atividades humanas os tipos se distribuem em ‘ boêmios’ , ‘ filisteus’ e ‘ criadores’ “ . Os “ boêmios” seriam os (homens) instáveis e inconstantes no seu comportamento, movidos por impulsos transitórios; os gulosos de novidades, variedade, aventura; os sensuais. Os “ filisteus” , pelo contrário, seriam os conservadores estáveis, constantes, intransigentes na conformidade com as tradições e os padrões dominantes de vida e cultura; passivamente dependentes dos outros nos modos de pensar e agir; inimigos de inovações e progressos que perturbem a chamada ordem estabelecida. Os “ criadores” seriam os animados por algum propósito definido, diverso dos dominantes, dos confortáveis, dos fáceis; seriam os animados por alguma visão renovadora ou nova da vida, da cultura, do mundo; seriam os inovadores, os renovadores por excelência.

Na exposição desta tipologia, Gilberto, contudo, adverte que não devemos facilmente enquadrar os homens segundo um ou outro destes tipos, pois, segundo ele, é raro o homem, o grande homem, e mesmo o comum, que não seja em sua personalidade, quando não em sua vida..., um boêmio dominado por um filisteu, aliado com um criador, ou um criador em luta contra um boêmio; ou um criador-filisteu atraiçoado por um boêmio, principalmente boêmio na mocidade, e, na idade madura, criador e filisteu, com restos de boemia.

Gilberto ilustra sua reflexão com alguns exemplos, referindo-se ao “ criador” Sócrates, em que teria habitado um boêmio desconcertante, detestado particularmente pela mulher, cujo ideal teria sido um marido filistino, enquanto o Governo e os interesses dominantes da época temiam no velho filósofo universalista principalmente o criador. Em outro exemplo, Gilberto caracteriza, ao lado de outros grandes homens, Santo Agostinho como um grande criador, mas depois de ter sido um dos maiores boêmios de todos os tempos.

Segundo Freyre, os antagonismos tipológicos podem alterar-se no homem com as circunstâncias, a idade, as experiências, os estímulos e as pressões do meio. Desta forma, a vida do homem se caracteriza por elementos transitórios, instáveis e inconstantes. Esta visão do transitório é, certamente, fundamental na compreensão do homem em Freyre.

Gilberto admite que a tipologia exposta em função do indivíduo também se pode aplicar na tentativa de compreensão dos diferentes povos. Os italianos, por exemplo, se destacariam mais por suas características transitórias, enquanto os anglosaxões se relacionariam mais com os valores essenciais do homem; características de constância, portanto.

Gilberto Freyre gosta de falar dos grandes homens. Mas adverte que nem todos os homens podem ser grandes homens. Neste contexto, considera absurda a exaltação do homem comum, feita por alguns políticos democratas norteamericanos. Estes políticos propunham o nivelamento de todos os homens ao deus da democracia, como diz Gilberto, com o sacrifício dos homens incomuns e excepcionais. Freyre considera este antinietzscheanismo tão perigoso como o nietzscheanismo absoluto da exaltação do superhomem.

Em toda esta reflexão, o interesse freyreano é tentar melhorar as relações entre os vários tipos de homens. Por isto, repudia tanto a fixidez das classes no fascismo, como a segregação racial no nazismo, e a estandartização de todos os homens em homens comuns da democracia americana. Nem superhomens, nem homens inferiores, nem a redução de todos os homens a homens comuns, mas o reconhecimento e o estímulo aos homens incomuns e excepcionais. Este deve ser o caminho. É preciso valorizar o homem em função de sua utilidade para a comunidade. Nesta relação do homem para com a comunidade se situa a necessidade do reconhecimento do direito que todos os homens possuem de acesso às mesmas oportunidades. Em relação ao aproveitamento destas oportunidades se manifestarão as diferenças individuais de aptidão, de temperamento, de talento, de sensibilidade. As diferenças na vida comunitária, segundo Freyre, serão mais de ordem individual, do que de sexo para sexo, de raça para raça, de classe para classe. Nesta descrição do homem comunitário, Gilberto exige que famílias, sexos, raças e classes tenham as mesmas oportunidades, embora nos indivíduos se devam reconhecer características diferenciais. Dali sua aversão a toda estandartização e massificação do homem, como propunham as ideologias do homem comum, do fascismo e do marxismo dos anos quarenta do século XX.

Para Freyre, as diferenças individuais são parte integrante da vida comunitária. Neste sentido, até os boêmios devem ser respeitados, pois na história há fartos exemplos da criatividade desta categoria de homens. Em sua argumentação, Freyre cita Bertrand Russell, que teria lutado pelo direito de sobrevivência dos vagabundos boêmios, propondo que a sociedade filistina não lhes desse apenas esmolas, mas subvenções. Isto porque entre eles poderia ocultar-se um novo Francisco de Assis, ou um Raimundo Lullo, presenças sempre necessárias entre os homens viciados pelo capitalismo, dominado pelos impulsos filisteus.

Para Gilberto, a saúde e o bemestar social dependem do equilíbrio harmonizado entre os três impulsos tipológicos da boemia, da criatividade e do filistinismo. Especificamente em relação à Bahia, Gilberto proclama que ela não é apenas a Bahia de Todos os Santos, (segundo outros, também a Bahia de todos ospecados!) mas a Bahia de todos os homens, o maior laboratório humano da América, em que se fundem todas as raças, todos os sangues, todas as aspirações que enriquecem a cultura brasileira. Ali, o homem sabe saborear a sua vida, e não se gasta apenas em “fazer” isto ou aquilo, rodeado de máquinas e arranhacéus, num trabalho ininterrupto, inimigo de todo vagar e lazer. O homem não pode ser apenas feliz quando em movimento, num ativismo esgotante, na ambição dos grandes lucros. O homem precisa também de lazer e vagar. E nisto, segundo Freyre, o baiano é mestre.

À base desta descrição do homem baiano, Gilberto exclama:

“Deus nos livre da filosofia ativista que reduz o brasileiro a ‘homo faber’: o homem que fabrica, o homem que faz isto ou aquilo, o homem que apenas produz monotonamente esta ou aquela coisa, o homem sem paciência para gozar a representação de ‘O Pato Selvagem’, ou honrar à mesa uma moqueca baiana”.

Após isto, Gilberto propõe o que em seu pensar, provavelmente, deveria ser o ideal para todos os homens:

“Fabricar e produzir o bastante para sua vida. Para as necessidades da vida e da cultura humanas. Nunca para os excessos furiosos de lucros individuais ou nacionais, através das competições, em torno de expansão e de expansão de produtos que trazem a guerra, as fomes, as grandes misérias. Tudo isto, muitas vezes, é pura rapacidade”.

É interessante que Gilberto Freyre, já em 1943, pense assim, pois hoje, quando se participa de alguns congressos latinoamericanos de filosofia, é exatamente isto que se afirma. Não mais somente em relação ao homem baiano, mas em relação ao homem latinoamericano. Alguns filósofos latinoamericanos, mais iluiminados, afirmam que seria uma selvageria para com o homem latinoamericano reduzi-lo apenas ao homo faber. A um ativismo desgastante do tipo tecnológico capitalista. A cultura tipicamente latinoamericana seria uma cultura da festa, em que o homem celebra tudo. A própria vida somente é vida realmente humana quando se preservam os valores da festa, isto é, do lazer, do gozo da vida, da celebração. Uma vida do estar, e não puramente do ser. Gilberto Freyre já intuiu muito antes de muitos dos filósofos latinoamerricanos, de hoje, o perigo do ativismo, da agitação desumana a que o capitalismo tecnológico nos condiciona.

Mais especificamente em relação à antropologia filosófica, encontramos as ideias de Freyre esparsas por toda a sua obra. Nas conferências na Bahia, ele recorre a Pascal, e cita a passagem em que este filósofo afirma que o homem é apenas um caniço frágil exposto ao vento, mas um caniço que pensa. Concorda Freyre com Pascal em que a grandeza do homem está em pensar. Mas nos adverte que Pascal também nos aconselha em não nos contentarmos com o raciocínio, nem com o pensamento, mas em crermos, ou, pelo menos, em agirmos como se crêssemos. Pois os homens possuem desejos que não se satisfazem nas ciências, nem na filosofia, mas na fé, nas igrejas, nos partidos misticamente políticos, no fervor pelas grandes causas. Estes desejos, para Gilberto, são necessidades humanas constantes. O homem deve harmonizar suas críticas, dúvidas e análises com a repetição das palavras e gestos comovedores de suas liturgias. O puro racionalismo, e a simples objetificação geram insatisfações insustentáveis no ser humano.

A sociologia puramente objetiva, com fórmulas matemáticas, não resolve o mistério do homem, animado, muitas vezes, pelo idealismo, o sentimentalismo e o romantismo. Na verdade, as ideias e os ideais do homem têm mãos e pés. Isto é, o ser humano é alguém que deve ser definido a partir de suas realizações e do chão em que pisa. Daí a constante necessidade de reinterpretar o ser humano através da história, de sua relação com o meio ambiente, que condicionam, até certo ponto, as relações interhumanas.

O homem concreto, objeto principal da análise freyreana, é o homem dos trópicos, o homem da morenidade brasileira. Por isto, Gilberto Freyre é considerado o “pai da tropicologia” e, por que não dizer, o pai da antropologia sociológica, cultural e filosófica brasileiras.

Inácio Strieder é professor de filosofia/ Recife-PE