Reflexão sobre Natureza e Cultura: diálogo entre autores
Encontrar um momento específico que caracterize a transição entre o chamado estado de natureza e o momento em que os indivíduos começam a se articularem socialmente e produzir cultura vêm sendo tema recorrente dentro das ciências humanas.
Empregada de uma maneira pejorativa, a expressão estado de natureza é associada a um estado “selvagem” da condição humana, onde os indivíduos com hábitos elementares e rústicos seriam incapazes de produzir cultura.
Todavia não é possível distinguirmos a separação entre natureza e cultura, uma vez que ambas estão intrínsecas ao desenvolvimento humano, dentro de suas limitações evolutivas, o homem vem produzindo cultura desde o momento em que articula e transforma a natureza, portanto essa falsa idéia de que existe um momento anterior onde o homem esteve em estado “natural” é refutada. O que se tem é um processo evolutivo onde a cultura é desenvolvida conforme os seres humanos vão se adequando ao meio e criando regras de socialização.
Edgar Morin em sua obra “Sapiens demens”, irá expor os rituais fúnebres dos neanderthales, esboçando uma prática ritualista para morte, ora um grupo social em condições primitivas de socialização já detinham práticas destinadas à idéia da morte, e criavam dentro dos rituais fúnebres todo um simbolismo designado a passagem da vida para a morte.
“O morto está numa posição fetal (o que sugere uma crença no seu renascimento), por vezes até está deitado sobre um leito de flores, como indicavam os vestígios de pólen numa sepultura neanderthalesa descoberta no Iraque ( o que sugere uma cerimônia fúnebre).” (MORIN, 1979, p.93)
Fica evidente através desse material arqueológico a consciência por parte desse grupo no que tange a questão da morte e da subjetividade, uma vez que o ritual fúnebre possui toda uma significação simbólica do além vida. Já temos ai, segundo Van Gennep a existência dos ritos de passagem que evidenciam uma mudança de status, posição social ou mesmo um estado de consciência.
Lévi-Strauss em sua obra “As estruturas Elementares do Parentesco” especificamente no capítulo “Natureza e Cultura”, irá trabalhar com essa dicotomia que tantas divergências causam as ciências sociais e chegará à conclusão de que essa diferenciação não é possível e mostra que a proibição do incesto, apesar das suas especificidades, é a norma comum a todas as sociedades.
A questão central na obra de Strauss é apreender a seguinte indagação: sendo o homem um ser ao mesmo tempo biológico e social, como entender nele a passagem da natureza para a cultura?
Segundo Lévi-Strauss, o estado de natureza é antes um exercício lógico do que um fato cronológico e é impossível esperar observar no homem um comportamento pré-cultural, pois se o homem é um animal doméstico, é o único que domesticou a si mesmo. Segue: “Nenhuma análise real permite apreender o ponto de passagem entre os fatos da natureza e os fatos da cultura, além do mecanismo da articulação deles” (STRAUSS, 2003, p. 47)
Entre os fatos históricos, o homem de Neanderthal, com seu possível conhecimento da linguagem, não pode ser considerado como vivendo em um estado de ausência de organização social, uma vez que dentro de suas condições já eram capazes de produzir cultura, como vimos os ritos de passagem relacionados à morte. Tampouco o caso das “crianças selvagens”, cujas circunstâncias da descoberta são duvidosas, pode depreender que o homem sem cultura é imbecil, visto que a anormalidade congênita fora a causa do abandono.
Entre os métodos, um consistiria em isolar uma criança recém-nascida para que, imune aos condicionamentos sociais, ficasse sujeita à observação de suas primeiras horas ou dias, porém os mecanismos fisiológicos ainda não desenvolvidos devido à precocidade da observação comprometeriam as conclusões. Caso se corrigisse isso prolongando o tempo de observação, o meio que satisfizesse as condições de isolamento seria tão artificial quanto o meio cultural que pretende substituir. Uma vez inserido em um ambiente, o indivíduo já sofrerá influências do meio, ou seja, já está comprometida a sua “neutralidade” e será impossível observar um comportamento pré-cultural.
Outro consistiria em buscar nos atributos da natureza das sociedades animais um modelo cultural universal. Porém, entre os insetos a transmissão hereditária e o equipamento anatômico necessário para satisfação dos instintos não contempla linguagem, instrumentos, instituições sociais e sistemas de valores estéticos, morais ou religiosos, e mesmo quando há indícios disso na outra ponta da escala animal, caso dos macacos antropóides como o chimpanzé, não há regularidade no comportamento coletivo e o pasmo recai sobre a impossibilidade de desenvolução ainda que não haja obstáculo
anatômico para isso.
Se a ausência de regra parece ser o critério mais seguro para identificar a natureza, implicando universalidade e espontaneidade, o oposto serve para qualificar a cultura, isto é, a norma e seus atributos do relativo e do particular. A proibição do incesto constitui exceção ao sintetizar os critérios da norma e da universalidade, visto que apesar de variar para cada sociedade a proibição do incesto está presente em todas.
Em suma, podemos concluir que não é possível dissociar natureza e cultura, uma vez que elas estão imbricadas. A produção cultural é decorrente do processo de socialização a qual os homens estão inseridos desde os primórdios da espécie, cada estágio evolutivo produzindo a sua cultura especifica, bem como os seus rituais. Vimos também, segundo Strauss, que a proibição do incesto apesar das suas especificidades é a norma comum presente em todas as sociedades, criando regras de socialização.
Referência bibliográfica:
Lévi-Strauss. Claude: “Natureza e cultura”. In: As Estruturas elementares do parentesco.
Morin, Edgar. “Sapiens demens”. In: O enigma do homem.
Van Gennep, Arnold: Ritos de Passagem. Petrópolis, Vozes, 1978.