IMPUNIDADE E CORRUPÇÃO - UM MAL QUE SE FABRICA?
Às vezes me entontece a preocupação.
Cheguei no escritório e o primeiro cliente que atendi, buscava uma informação que me obrigou a dedicar grande parcela de minha previsão de tempo para o atendimento, explicando-lhe uma série de implicações para sua conduta delitiva.
Os vários anos de militância nas sendas do Direito Criminal, tem me levado a fazer sérias restrições aos modos como o tema violência, corrupção, justiça, punição, instituições e outros derivados, tem sido tratado nos meios de comunicação.
A fala daquele cliente, infeliz, de olhos pregados nos meus, me fez perceber o quão necessário é preciso mudar a forma de abordagem desses assuntos.
Sobre a mesa, cópias de peças processuais relativas a um mariticídio, cometido mediante paga. Mulher de ímpetos voluptuosos, de libido insaciável, envolve-se com cidadão de escrúpulos duvidosos e concorda em dar cabo do companheiro. A paga teria sido feita com valores oriundos de depósitos acumulados em sua conta de poupança, alimentada pelo próprio infeliz, abatido a tiros à porta de sua casa, quando voltava do trabalho.
Processado o expediente policial, ao desaguar no judiciário, após confissão de autoria, deu-se a prisão da mandante por força de ato preventivo expedido pelo magistrado presidente do processo. Durante todo o andamento do processo, não foi possível a quebra da preventiva, culminando com a condenação da acusada a permanecer reclusa por alguns longos anos.
Àquele cliente da primeira hora, como forma de ilustração, mostrei o caso. Mantendo uma expressão de frieza e convicção, sua reação me causou espanto:
"E o sr. tá se matando na defesa porquê? Ninguém fica preso no Brasil!"
Confesso que não estava acreditando no que ouvia. Resolvi espichar a conversa e o espanto foi ainda maior:
"Nesse país só vai pra cadeia quem não paga pensão alimentícia".
Desde aquele instante, minha observação chamou a atenção para a forma como essas questões tem sido tratadas nos meios de comunicação. Vende-se irresponsavelmente uma impressão que tem cristalizado no ideário das pessoas comuns, uma falsa verdade de que o crime compensa no Brasil. Em minha maratona rotineira, enfrento periodicamente os parlatórios dos presídios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde exerço minha advocacia. Nada é mais degradante que a figura do preso impotente, contido por algemas, acossado por vigias, cabeça baixa, de rosto virada para a parede, numa postura de subserviência e dominio. Não são simples alimentantes relapsos que não cumpriram com o mister de mantença de filhos e esposas. Pelo contrário, a maioria, jovens que sequer somam tres décadas de existência; tomados pelo vício implacável do tráfico de drogas, mãos sujas de sangue por bagatelas insignificantes de pedras que corroem o moral da sociedade e alimenta, por outro lado, interesses inexpugnáveis que não tem cara, não tem identidade e não aparecem.
Esses padrões não aparecem nos meios de comunicação, de há muito, não se fala em superlotação, maus tratos, tratamento desumano, falta de respeito a direitos fundamentais, presentes em nossas cadeias. Há casos de presos mantidos dentro de containers de metal, como se estivesem encaixotados como mercadorias.
Não é verdade que não existe punição no Brasil. Não é verdade que o crime compensa. Rebati de pronto e informei ao meu cliente, agora assustado, de que aquela defesa seria sustentada em breve e que a autora do inusitado crime se encontrava presa, desde o início do inquérito.
É latente que existe atualmente entre nós, uma campanha virulenta e perigosa, que tenta, por todos os modos extirpar da Carta Política alguns direitos tão fundamentais quanto inerentes à dignidade da pessoa humana. A doutrina nos ensina tratar-se de uma corrente denominada "Direito Penal do inimigo" onde se imagina que a aplicação do Talião ainda é o método eficaz para sarar todos os males da sociedade. De contra partida, não atentam para o detalhe que a supressão desses direitos, como, o direito ao silêncio, por exemplo, seria o passo mais curto para a institucionalização da tortura, do pau-de-arara, do alicate, do afogamento, e outros meios que remontam ao obscurantismo da idade média. Não imaginaram que a imposição da prisão preventiva, como regra, será capaz de institucionalizar a punição sem defesa, sem a avaliação dos elementos probatórios que compõem o processo. Seria o enfraquecimento do direito sagrado de defesa. Não avaliam, os adeptos dessa doutrina que o principio da presunção de inocência, tem como fundamento básico afastar a possibilidade de perseguições e uma série de consequencias capazes de advir desse principio medieval de que quem é acusado é quem tem o dever de provar sua inocência.
A formação de uma convicção coletiva a respeito do combate a essas garantias, leva-nos à formação de uma sociedade que desacredita de suas leis, das instituições que as produzem e das que as aplicam e executam. Mais que isso, anexam a essa convicção, que somos todos uns santinhos e que, políticos, juizes, advogados, promotores de justiça, sobretudo, são os responsáveis por tudo de ruim que acontece no país. Esquecem-se os arautos dessa mensagem que é no meio dessa população catequizada que vamos encontrar nossos políticos, juizes, advogados, médicos, engenheiros, jornalistas e cidadãos de toda espécie. É um comportamento que ao invés de ajudar na solução dos nossos problemas, contribui para o seu acirramento. Dizem que são omitidas as notícias sobre suicídio, como forma de não estimulá-los, o que alimenta e reforça ainda mais minha preocupação.
Ao abordar a questão da CORRUPÇÃO, na forma como o assunto vem sendo colocado, não vislumbro qualquer possibilidade de avanço, se não observarmos a necessidade de informar aos que tomam conhecimento do assunto que você só terá a figura do CORRUPTO, se do outro lado estiver a figura do CORRUPTOR. É como está na lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação. Mas, é preciso dizer que o CORRUPTOR é aquele que oferece a propina para não ser multado no trânsito; é aquele que aceita que a Nota Fiscal seja emitida em valores a menor do que foi pago pela mercadoria adquirida; é aquele que recebe um real a mais no troco e não informa ao caixa que o troco tá errado; é aquele que se propõe a pagar a um coyote para atravessá-lo nas fronteiras dos Estados Unidos, desanda a mandar dólares pra família, e se vangloria de ter dado tudo certo - claro, tá vindo dinheiro, ninguém questiona! É preciso contar à sociedade que corrupção não tem cor partidária não tem religião e nem sexo. É preciso contar à sociedade que a corrupção pode estar em um palacete de Brasilia, mas pode estar na cozinha de nossas casas, no supermercado da esquina, ou até na igreja que frequentamos, porque não!
Minha saudosa mãe não se cansava de nos dizer em casa que quem tinha coragem de apropriar-se de uma agulha, seria também capaz de roubar um avião(uma referência à grandeza do bem). A imaginar que iremos combater a CORRUPÇÃO apenas reivindicando cadeias e punições, como entende grande parte dos "comentadores" inútil qualquer batalha. Precisamos mudar nossa forma de observar a sociedade. Precisamos, antes de tudo, ser honestos conosco mesmo. Precisamos retomar valores e princípios tão esquecidos em troca de informações alienígenas e vazias que nos chegam de forma fácil. Precisamos exigir respeito e uma maior valoração de nossa cultura e de nossas divergências regionais, estupidamente atropeladas em troca do lucro fácil. Precisamos prestigiar e valorizar nossas instituições; precisamos acreditar que elas serão parceiras fundamentais para o abate de toda forma de concupiscência que venha a surgir no meio social. Precisamos dizer bem alto que acabar com a CORRUPÇAO, com a violência e qualquer forma de impunidade, não basta apenas cruzar as mãos em forma de pomba no peito e fincar vassouras na praça. É preciso tirar de nosso imaginário toda e qualquer forma de aproveitar-se da fraqueza de alguém para satisfazer nossos interesses. É preciso estar atento para o que fazemos no dia a dia. Precisamos dizer alto aos que nos ouvem que dizer a eles que a "CORRUPÇÃO é algo que só os políticos cometem", é também uma forma de CORRUPÇÃO dissimulada, e essa é muito mais grave que qualquer outra forma de se corromper.
Nada está perdido, contudo. Um pequeno gesto pode ser o prenúncio de uma grande mudança.
Wagner M. Martins - Advogado e Escritor