POR TRÁS DA LETRA

" Por uma infância sem racismo".

"Não classifique o outro pela cor da pele. O essencial você ainda não viu."

"Lembre-se: racismo é crime."

Dois mil e onze é o ano da África. Quem definiu isso foi o Unicef e as frases acima compõem o slogan da campanha de combate ao racismo que o referido órgão se propôs a realizar.

Tomei contato com esses dizeres, dentro de um ônibus, que me conduzia até a faculdade, na última sexta-feira. A SPtrans aderiu à campanha e cedeu o espaço do Jornal do Ônibus como meio de divulgação.

Fiz questão de fazer todo esse preâmbulo, pois imagino que pouca gente atentou para esse fato. E sei também, que é demasiadamente pretensioso da minha parte exigir que as pessoas prestem atenção ao foco da campanha e ainda mais ao seu conteúdo, por mais importante que a iniciativa possa ser. E de fato é. E a intenção pode até ser louvável, pelo menos ao desatento olhar de uma sociedade eminentemente exclusivista e preconceituosa.

Cada convenção linguística se utiliza de termos para deixar transparecer aquilo que se quer expressar, metafórica ou literalmente. O que me encanta na Língua Portuguesa é justamente o fato de poder usar determinado termo e perceber que ele dá margem à múltiplas interpretações. Grandes nomes da nossa Literatura e da nossa Música usam esse recurso com maestria: Chico Buarque, Machado de Assis, Noel Rosa e outros tantos.

Voltando ao foco central desse artigo, me pergunto até agora, se o autor ou os autores (pode ter tido mais de um) do slogan citado no início, notou que se trata, na verdade, de uma imensa contradição, por ser o mote de uma campanha antiracismo e portar em si mesmo o racismo, ainda que escondidinho por trás da letra. Analisemos parte a parte:

1 - "Por uma infância sem racismo": Duas perguntas ficam no ar: a adolescência e o período adulto não estão inclusos na campanha? Por que?;

2 - "Não classifique o outro pela cor da pele. O essencial você ainda não viu": Mais algumas dúvidas: o essencial é visível? É cognossível? Não sei se quem redigiu o texto conhece Aristóteles, discípulo de Platão, mas em todo caso, sempre é bom trabalhar os conceitos de quem veio investigando isso muito antes de nós. Aristóteles distingue, em uma de suas obras, a essência e o acidente, sendo a essência aquilo que define o ser; aquilo sem o qual o ser deixaria de ser o que é. Já o acidente é um predicado do ser, que embora seja importante, não altera o ser em sua essência. Retomando a pergunta: será a essência humana passível de conhecimento? Creio que a resolução dessa questão seria bem menos complexa se estivéssemos lidando com coisas. Mas supondo que possamos, um dia, de fato conhecer a essência humana, isso nos tornaria aptos a classificar alguém pela cor da pele? Mais uma evidência de contradição, já que estamos num país que canta aos quatro ventos aquilo que se chama de igualdade;

3 - "Lembre-se: racismo é crime: de fato está previsto na lei. Mas, diante do lembrete e observando a conduta do cidadão, continuo me perguntando pra que servem as leis.*

Eu sei. Ninguém é obrigado a conhecer estrutura linguística, tampouco filosofia e muito menos lógica aristotélica ou o princípio da não-contradição. Mas insisto em convidar o leitor à reflexão e à tentativa de olhar além da superficialidade, para descobrir o que está por trás da letra.

* menção ao artigo PRA QUE SERVEM AS LEIS, publicado neste perfil, pelo mesmo autor, aqui no RL.

Marcello Santos
Enviado por Marcello Santos em 24/10/2011
Reeditado em 24/10/2011
Código do texto: T3295951
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