O diferente não seria também "o próximo"?

Por: Manoel Messias Pereira

A democracia que herdamos dos gregos proclama um governo de todos e para todos, ou seja, um sistema de governo em que o todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou através dos seus representantes legitimamente constituídos. Até hoje o melhor sistema de governo já experimentado pela humanidade, tanto que vige na maioria dos Estados, como é o caso do Estado Brasileiro.

Num Estado Democrático de Direito, constitucionalista, como é o nosso caso, a regra vigente é que as decisões prioritariamente devem ser tomadas pela maioria. Mas recentemente esse princípio vem sendo objeto de debate, diante de determinadas questões relevantes, tais como a importância da diversidade, a necessidade de respeito aos direitos das minorias, a importância do reconhecimento, valorização e fortalecimento das comunidades tradicionais, ou seja, estamos diante do primado constitucional da reelaboração de uma nova mentalidade de convivência com as diferenças, nos seus mais variados aspectos, nas mais diversas realidades, sob a orientação da relevância dos direitos humanos e dos princípios constitucionais da dignidade humana, da igualdade e da liberdade (liberdade de opinião, de locomoção, de opção sexual, de pensamento, e assim por diante).

Nesse contexto, a discussão que nos parece relevante, sobretudo, é refletir se a democracia é exercitada na sua plenitude quando respeitamos e seguimos a vontade hegemônica da maioria, ainda que essa maioria esteja, porventura, carregada de preconceitos, hipocrisias, moralismos, conveniências filosóficas de domínio e outros interesses, ou quando praticamos a igualdade, tão propalada no discurso recorrente, e primamos pelo equilíbrio, validando os interesses das maiorias, mas sempre levando em conta e respeitando os direitos das minorias.

Nesses dias, os brasileiros tem debatido, de forma empolgante, uma questão de relevância nacional, envolvendo, sobretudo, direito, sociedade, família e religião, ou seja, a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF, que reconheceu o direito à união estável entre pessoas do mesmo sexo, e o Projeto de Lei nº 122/06, que tramita no Congresso Nacional, cuja essência define as práticas homofóbicas como crime, à luz dos dispositivos constitucionais contidos na Carta de 1988.

Uma parcela considerável da sociedade brasileira, sobretudo uma parte da população cristã, no entanto, não parece pensar dessa forma, argumentando que respeitar de maneira plena as garantias e os direitos dos homossexuais fere a constituição e agride determinados princípios morais e religiosos, pugnando, portanto, pela manutenção de determinados limites legais, como a vedação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e a sustentação de certas proibições de cunho moral, como a recente suspensão da distribuição de material educativo nas escolas da rede pública e, ainda, sustentando, veementemente, que a manifestação pública contrariamente aos homossexuais, desde que embasada em fundamentos teológicos e filosóficos, não pode ser considerada como discriminação, pois, estar-se-ia a atentar contra a liberdade de expressão do pensamento, liberdade esta prevista no art. 5º da Constituição Brasileira.

É sempre bom salientar que vivemos numa democracia e, portanto, todas as opiniões merecem respeito, por isso, nessa seara, a religião, uma das instituições sociais mais importantes da humanidade, certamente possui suas razões para se manter firme contra a igualdade plena dos homossexuais, em todos os seus aspectos. Contudo, respeitar não quer dizer aceitar como verdade absoluta. Logo, tais posições devem ser objeto de debate, mormente porque se trata de uma questão posta no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, firmada no Título II da Constituição da Republica Federativa do Brasil.

Nesse contexto a sociedade brasileira parece viver um conflito: de um lado uma realidade social, diga-se de passagem, já consolidada e que caminha em busca do reconhecimento legal, de forma ampla, à luz do quanto garante a Lei Maior do país, expressada pelo legislador constituinte de 1988, contudo, com poucas condições políticas de levar a efeito as suas garantias constitucionais, em curto prazo; e do outro um pensamento hegemônico de raízes históricas, filosóficas e teológicas, de conteúdo essencialmente dogmático, indiscutivelmente majoritário e com todas as condições de fazer-se impor pela supremacia numérica, interferindo, concretamente, no âmbito social e político.

Nesse caso não estaríamos nós a discutir uma questão de igualdade material, ou seja, as pessoas, enquanto matéria, assim como enquanto corpo e alma, não deveriam ser tratadas, “todas”, como iguais?

A previsão principiológica de que se deve amar ao próximo como a si mesmo deve ser interpretada de forma ampla ou limitada? Quais são as chances de se efetivar esse princípio no campo humanitário, no campo da convivência com o diferente, no campo da legalidade e no campo do amor efetivo às pessoas? Quem seria o próximo, efetivamente?

Quando o evangelista Lucas, na sua parábola “O bom Samaritano”, sugere que o bom pode estar no diferente, esse diferente nos tempos de hoje não poderia ser qualquer pessoa, por ventura, com opções diferentes de pensamento, de opiniões, de sexo, de religião, e assim por diante?

Uma mobilização massiva como a que tem sido feita pela recusa do Projeto de Lei nº 122/06 pode ser definida como homofobia? As lideranças religiosas tem se manifestado no sentido de que o movimento não deve assim ser conceituado, eis uma discussão conceitual que parece irrelevante diante dos fatos e da relevância material da questão em debate. Afinal, o termo homofobia é definido como: “repulsa ou preconceito contra a homossexualidade ou os homossexuais”, ficando, portanto, no campo da reflexão se o movimento em curso contra a aprovação do PL 122/06 tem ou não caráter homofóbico, trata-se de uma questão ético-filosófica.

No que tange à legitimidade da discussão em voga, numa análise de cunho social, respeitando-se, logicamente, toda carga religiosa, há de se levar em conta que existe um volumoso recheio de hipocrisia nessa questão: primeiro, que se levantem as vozes contra a legalização de uma realidade já legitimada no seio social; segundo, quando se defende a legitimação da defesa de preconceitos; terceiro, não há registro de tão grande mobilização contra problemas muito mais preocupantes e crescentes entre nós, tais como o uso de drogas e suas consequências, a criminalidade, a corrupção endêmica, a pobreza, a má qualidade da educação nacional, e outros e outros. Todavia, quer-se atribuir malignidade social a uma opção, uma conduta, um pensamento, uma prática que, em verdade, nenhum mal causa à sociedade.

Sinceramente, salvo interesses de cunho político-filosófico, que, claro, devem ser respeitados numa democracia, não dá para visualizar o prejuízo que traria para a sociedade brasileira a distribuição de um panfleto, nas escolas, senão sócio-educativo, já que o conceito de educação também encontra limitação epistemológica, meramente informativo e, logicamente, inofensivo, que a Presidência da República, cedendo às pressões da maioria, em nome do moralismo nacional, determinou fosse abortada tal distribuição. Interessante é refletir que essa mesma maioria não tem demonstrado interesse em integrar esforços com o Estado, no sentido de erradicar males como a circulação de drogas nas escolas, a indisciplina estudantil, a violência no ambiente escolar, dentre outros e, a rigor, buscar a melhoria da qualidade da educação, por exemplo.

Para fortalecer a discussão, poderíamos resgatar o preâmbulo da nossa Carta Magna de 1988 e, sensivelmente, fazer uma conexão com o princípio da igualdade, na própria Constituição, com também, com a vênia dos Cristãos, é claro, associar ao princípio de igualdade contido nas escrituras sagradas, permanecendo assim abertos ao debate e à reflexão, pela inclusão e à margem do preconceito.

Destaquemos, portanto, como o nosso legislador constituinte definiu os valores fundantes da República Federativa do Brasil:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos DIREITOS sociais e INDIVIDUAIS, a liberdade, a SEGURANÇA, o bem-estar, o desenvolvimento, a IGUALDADE e a justiça como valores supremos de uma SOCIEDADE FRATERNA, PLURALISTA e SEM PRECONCEITOS, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. Grifo nosso.

Segue o constituinte, prescrevendo o compromisso do Estado Democrático de Direito com os direitos de todos, com a fraternidade, com a igualdade, com a pluralidade e contra o preconceito, assim firmando no art. 3º, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(...)

IV – Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A propósito, não seria uma determinação divina a formação da unidade do gênero humano, graças à sua origem comum em Deus? Não teria Deus criado, a partir de um só homem, todo o gênero humano, conforme ensinado em Atos, 17:26)?

E, ainda, conforme inferido em João 1:12-13: “Mas, a todos quantos o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.”

Pedindo, mais uma vez, aos cristãos, a permissão e externando-lhes o respeito pela palavra sagrada, esses preceitos não traduzem, de maneira ampla, o mandamento divino em prol da igualdade entre todos os homens? A ampliação da aplicabilidade desses princípios não levaria a humanidade a ganhar muito mais do que a sua limitação?

Saliente-se, o propósito aqui não é, nem de longe, fazer uma interpretação distorcida do que está escrito, até porque tal intenção não levaria a nada, mas refletir sobre o que está escrito. Por isso esses aspectos estão aqui postos em forma de questionamento, numa posição eminentemente reflexiva, pelo entendimento.

Finalmente, alguns pontos para reflexão: a) é realmente incompatível a prática da religião e o respeito pleno aos direitos daqueles que, preservados os seus motivos, fizeram ou fazem uma opção sexual diferente? Não estaríamos aí a supervalorizar a intolerância, sem focar na possibilidade de um meio termo que, provavelmente, levaria a nossa sociedade a ganhar muito mais? b) num país apontado pelos organismos internacionais como sendo um dos mais críticos do mundo em concentração de renda e, lamentavelmente, baixo rendimento em educação, não seria muito mais interessante se travássemos uma ampla mobilização nacional pela minimização dos problemas que realmente tem limitado o crescimento do país ao longo de sua história, valorizando, nessa medida, elementos como a igualdade e a fraternidade a caminho da humanização e da transformação, material e, quiçá, até espiritual?

Manoel Messias Pereira, professor, licenciado

em História e bacharelando em Direito.