Ameaça e reciprocidade: o difícil caminho da negociação
Lúcio Alves de Barros*
“Para quem sabe quem é”
Tenho um profundo medo do fenômeno da ameaça. No velho Aurélio, ameaçar significa “por em perigo”, “estar em eminência de” fazer algo. Só pelo conceito simples e apavorante que perpassa com naturalidade o senso comum o fenômeno já merece ser revestido de complexidade, seriedade e cuidado.
É bem verdade que da fala a ação, como diz o educador Paulo Freire a distância é enorme. Mas neste caso, todo cuidado é pouco. A distância pode ser encurtada por minutos, segundos e o aqui e agora transforma o conceito em violência, crime ou morte.
Ameaçar na realidade parece fazer parte de nossa cultura. Em Minas Gerais atleticanos e cruzeirenses vivem se ameaçando chegando, inclusive, a grandes conflitos e mortes. Mas, nas maioria das vezes, ficamos na torcida. Pais e mães ameaçam em tirar a famigerada mesada dos filhos, policiais ameaçam suspeitos, alunos ameaçam professores e estes revidam tal como os casais que vivem se debatendo em uma relação que pode resultar em separação ou mudança da guarda dos filhos. Poderia ainda citar outros exemplos, como as ameaças do Estado em voltar com a CPMF, em aumentar impostos ou mesmo a de engolir a seco autoridades políticas corruptas que andam utilizando como quintal privado as instituições públicas deste país.
No entanto, o que conta é o tronco comum das relações. As ameaças tiram o sossego de todos que estão próximos á vítima. Ela acaba com a reciprocidade. Coloca a vida em xeque e implanta a dúvida, por vezes sem direito ao contraditório e análise da conjuntura do acontecimento no qual ela se forjou. A ameaça pode ir mais longe nestes tempos difíceis. Ela carrega, por definição, requintes de crueldade, invisibilidade, terror e relação de forças desiguais. Não é por acaso que homens ameaçam as mulheres, mas respeitam, provavelmente devido a possibilidade do uso da força física, outros homens. O problema é como garantir a proteção da vítima em frente ao predador que utiliza forças desconhecidas em um campo de batalha sem regras e normas.
De qualquer forma, a vítima da ameaça é que merece os maiores cuidados. Ameaçada, ela se torna refém e, como sabemos, o corpo trata de disparar uma enorme energia para que ele possa sustentar as adagas provenientes do opressor. A ameaça anda de mãos dadas com a possibilidade da violência. Ela é o fim da negociação. Animais ameaçam e matam, homens e mulheres ameaçam e negociam. No término dessa possibilidade nascem a violência e, provavelmente, o crime. Como se sabe, no jogo sem juiz o conflito é inerente e os resultados inesperados e dramáticos.
Como deveria ser de conhecimento de todos, se não existe a possibilidade de negociação a saída é a lei. Essa coisa meio estranha que - no Brasil - todos dizem que conhecem, todos dizem que seguem, mas que ninguém utiliza. Ela, neste caso, é somente para desigualar as forças que foram hierarquizadas na hora da ameaça oriunda do mais forte. E é justamente neste caso que reside o problema. Pensamos que o problema sempre é do "vizinho" e não nos comprometemos. Vemos a vítima ao longe, o ameaçador livre e andando por perto e colocamos o pano quente no tecido relacional que já se rasgou.
A coragem é fazer valer o simples princípio: a proteção dos mais fracos e deixar transcorrer contra as relações de ameaça a lei transparente e compactuada a priori. A ideia é evitar maiores problemas. Evitar o cansaço, o choro da vítima, o gozo do expectador, o sofrimento compartilhado pelos amigos e mais próximos, o mal-estar e o cantar sempre alto, sádico e perverso do voyeurismo social. As relações ameaçadoras causam pânico, horror e terror, mas podem ser solucionadas racionalmente e negociadas entre iguais. Longe disso, não há outra solução senão o uso de regulamentos, regras e normas acordadas. Existe sim, uma outra possibilidade: deixar as coisas como estão para que elas mesmas se resolvam. Este é um comportamento perigoso que os vitimólogos já chamaram atenção: trata-se é de prolongar o sofrimento da vítima e acabar com sua economia psíquica e, a meu ver, depois dos possíveis acontecimentos (in)esperados, catar as pedrinhas da culpa compartilhada pelo cansaço, silêncio, sofrimento e a morte do outro.
*é doutor em ciências humanas: sociologia e política, professor da FAE (Faculdade de Educação) da UEMG em BH, da Faculdade ASA de Brumadinho e organizador do livro “Mulher, política e sociedade”. Belo Horizonte: Ed. ASA, 2009.