VIVER DÁ TRABALHO
Sem dúvida, uma das coisas que mais atormenta o homem e a mulher deste nosso século é ter que decidir sobre qualquer coisa. Decidir sobre algo, fazer uma escolha, significa que você está deixando de ter, com certeza, muitas outras.
Sofre-se hoje pela multiplicidade de possibilidades, pela enorme diversidade de caminhos e, principalmente, por não se ter certeza sobre coisa alguma.
O risco é inerente a qualquer escolha. O mundo no qual sabíamos bem quais os rumos que tomaríamos na vida ficou para trás, lá nos meados do século XX. O pai era a referência principal desse estado de coisas, a igreja, uma instituição que possuía um crédito mais ‘acreditável’ do que tem hoje; a família era aquela que, incrivelmente, ainda passa no comercial de margarina, e as carreiras profissionais eram mais ou menos estáticas.
No mundo globalizado tudo isso é fortemente chacoalhado. O pai já não é referência, sua figura, quando existe, já não transmite a segurança de outrora, ele mesmo, o pai, já se sente incomodado em sua nova roupagem, perdido, em franca crise de identidade, sua autoridade agora é frontalmente questionada.
A igreja é outra grande desacreditada em nosso século. Um século em que ela faz um papel de produtora de eventos; os católicos, por exemplo, são cristãos que frequentam a sua igreja apenas em eventos pontuais: casamentos, batizados, quermesses...
Fé? Virou uma coisa extremamente particular. Ninguém mais segue à risca os conselhos do padre e, de fato, certamente nunca um ser humano conseguiria se adequar perfeitamente a uma religião.
Este ser, o padre, e por extensão, todos os portavozes do divino, (é, ele não sabe se expressar sem ajuda) gozam hoje também de uma credibilidade mínima, quase nula.
A família da propaganda de margarina está somente lá, na propaganda da margarina. Um modelo familiar para nossos dias não existe. Papai, mamãe e o casal de filhos sentados na mesa de jantar é apenas uma foto de um passado cada vez mais distante. Não há uma configuração modelo para a família do século XXI. Casais homossexuais, famílias monoparentais, pessoas solteiras aos montes, casais que moram em casas separadas...
Muitos dirão que tudo isso que vivemos hoje é uma tremenda baderna e apelarão para o retorno dos ‘valores da família’, para um moralismo reacionário, para soluções violentas; já ouvi gente, estupefato, clamando pelo retorno da ditadura militar no Brasil, pois naquele tempo havia ordem e as coisas eram melhores.
Senhoras e senhores, viver hoje, mais do que nunca, significa um risco constante. E não adianta se queixar por que nem Deus nem os anjos vão te ajudar a curar essa eterna insatisfação em seu coração. Entre o mundo e o ser humano há um conflito essencial.
Somente você, homem antropocêntrico, é que acha que as coisas todas foram criadas para servir aos teus anseios.
As escolhas sempre vão requerer responsabilidade e vão te angustiar; quem quiser ser feliz, pelo menos um pouquinho, deverá apostar no risco da decisão equivocada.
Esqueça, leitor do semblante contrariado, esqueça! A globalização é irreversível, e os valores tradicionais dos séculos passados com certeza terão cada vez menos espaço no mundo atual.
Se isso deprime alguns pela falta de lugares para se firmar, para outros é a própria oportunidade de brotar uma fresca e deliciosa liberdade; liberdade essa de se reinventar constantemente e de ter a sua marca de originalidade deixada neste mundo.
É isso mesmo, viver dá um puta trabalho, não te disseram ainda?