A ética em crise [SERMO CXVI]

A ÉTICA EM CRISE

A exclusão como resultado do capitalismo neoliberal

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Não há problema em perder a vida;

o pior é perder a honra

José Alencar († 2011) Ex-Vice Presidente do Brasil

DESRESPEITO E RAPINA

A história da América e, por conseqüência a do Brasil, tem um início tumultuado e, de certa forma, nada dignificante. Hoje, estabelecendo uma leitura crítica da chamada “História das Américas”, somos obrigados a reconhecer que as primeiras linhas de nossa brasilidade foram escritas com as tintas do desrespeito e da rapina.

Habilmente, por alguns séculos, os historiadores conseguiram nos impingir uma narrativa diametralmente oposta às realidades. Se isso, de um lado conseguiu satisfazer nossa fase juvenil, as conseqüências dos processos coloniais, até nossos dias, revela que a história não foi bem assim como nos contaram, e que muitos fatos que se desenrolaram no passado, fugiram, casual ou propositadamente, da análise dos responsáveis por escrever a história e passá-la às gerações posteriores.

Deste modo, podemos ver que na chegada do homem branco à América acontece a gênese de muitos problemas que, como veremos no decorrer desta obra, chegam à atualidade com uma potencialização de problemas sociais, políticos e econômicos.

O título deste primeiro capítulo poderia ser mais provocativo: No princípio houve uma invasão! Até, se quisesse ampliar a provocação, se poderia ir mais além, afirmando: Tudo começou com uma invasão! Não que eu queira dar uma de sensacionalista ao invocar o título, mas se entende que, nada melhor que uma frase assim para começar a enunciar um grave problema, cuja data de nascimento é 12 de outubro de 1492, ou, para nós brasileiros, 22 de abril de 1500.

Falo em desrespeito e rapina porque a terra americana tinha dono. Como o invasor, espanhol no Caribe, e português no Brasil tinham mais força, sua atitude foi dissimulada e absolvida por alguns tribunais restritos, submissos ao poder ibérico, mas definitivamente condenada pela consciência geral.

No mês de outubro de 1992, foram comemorados os 500 anos da chegada dos espanhóis à América. Num gesto conjunto, representantes das diversas nações ameríndias negaram-se a participar daqueles festejos, alegando que não era momento de festas, mas de reflexão, pois o que o europeu chamou de “descobrimento” era uma deplorável ato de invasão.

De fato, por que festejar? Comemorar o quê? O índio americano, junto com o negro e as sub-raças que surgiram de tantos cruzamentos, representam hoje o epicentro da reflexão sociológica sobre as culturas excluídas, na América.

Tudo começou com os descobrimentos. Em meu livro Terra, dom de Deus, Paulinas 1994 eu afirmo que “O brado discricionário do vigia da gávea da nau Santa Maria – ‘terra a vista’ – se tornou a ata de um gesto característico de desrespeito à vida, à cultura, à propriedade e aos sistemas constituídos”. Todo o desrespeito aos povos latino-americanos teve início com esse fato, que alguns chamam de “descobrimento” e eu prefiro classificar de “invasão”, pois a terra tinha dono.

A esse respeito, há um fato triste, constrangedor, mas extremamente esclarecedor destas assertivas. Quando o Papa João Paulo II visitou o Peru, em 1985, recebeu dos sobreviventes dos índios aymaras, das mãos do cacique Ramyro Reinaga, uma Bíblia bem velha, surrada.

“Nós, índios dos Andes e da América, decidimos aproveitar a visita de João Paulo II para devolver-lhe a Bíblia, porque em cinco séculos, ela não nos deu nem amor, nem paz, nem justiça. Por favor, tome de novo a sua Bíblia e devolva-a aos nossos opressores, porque eles necessitam mais de seus preceitos morais do que nós, pois, desde a chegada de Cristóvão Colombo, foram impostas à América, pela força, uma cultura, uma língua, uma religião e valores próprios da Europa. A Bíblia chegou para nós como parte de um projeto cultural imposto. Ela foi a arma ideológica desse assalto colonialista. A espada espanhola, que de dia atacava e assassinava o corpo dos índios, de noite se convertia em cruz que atacava a alma índia” (In: L. BOFF, América Latina: da conquista à nova evangelização, ed. Ática, 1992).

Para situar o equívoco colonialista europeu, é indispensável revelar que algumas culturas ameríndias, como incas e astecas, tinham um nível de vida, cultural e social, igual ou mais adiantado que os colonizadores da metrópole.

Descobrir uma terra, ética e historicamente falando, é chegar a um lugar abandonado, sem dono, onde inexistam culturas e/ou valores sociais. Subjugar, matar, roubar, impor padrões de cultura, é praticar rapina, é conquista armada, legítimo ataque, como o de Pearl Harbour, Polônia ou, mais recentemente, ao Afeganistão. Os assassinatos e roubo de riquezas naturais, perpetrados por Pizarro e Cortez, e que foram desencadeados desde o México até o sul andino, suplantam em estatística e crueldade todos os horrores das guerras modernas, tão execradas pela opinião pública mundial.

No Brasil, considerando-se que os índios eram mais atrasados e mais pacatos, a invasão portuguesa de 1500 foi análoga, em desrespeito às culturas locais. O que foi levado para a Europa, principalmente em ouro e pau-brasil, é incalculável. Uma vez que, o país, como nação, formou-se a partir de tanta rapina, violência e desrespeito ao patrimônio e à vida, a história subseqüente, seja no período imperial, seja na república, até nossos dias, traz consigo, além da mancha, o estigma, e além do estigma a prática da velhacaria, da fraude e da obtenção de coisas pela burla e/ou pela violência, sempre ao arrepio dos impotentes - e às vezes coniventes - sistemas legais.

Da conquista arbitrária, seguiu-se a colonização violenta e a consolidação injusta, que vieram desaguar, qual um fétido esgoto, no modelo sociopolítico atual, elitista, concentrador, não-solidário, fechado, corrupto, violento e excludente. Diante do caos de nossa política, incapaz de regular os modelos social e econômico, muitas vozes se levantam. Umas indignadas pela injustiça, outras, apenas conformadas, e de certa forma validadoras do status quo que se implantou.

O dualismo social (escravos e elites), vigente desde a colonização remete o continente hoje a práticas agrárias primitivas (não há interesse em modernizar o meio rural), exclusivistas (latifúndio, terras em mãos de poucos) e setoriais (política coronelista e clientelista). De um lado, as elites, historicamente, da invasão até nossos dias, é composta por portugueses, espanhóis, funcionários da coroa, barões rurais, empresários, militares (patentes superiores) donos de multinacionais, liberais e intelectuais. Os escravos, no Brasil se iniciaram com os índios e foram desembocar no homem de hoje (assalariados, desempregados, subempregados, sem-terra, sem-teto, professores, militares (praças de graduação baixa, o lumpen proletariat), passando pelos negros e pelos mestiços, todos habitantes de favelas, malocas e cortiços.

Os sistemas políticos brasileiros sempre tentaram dizer que a pobreza é um mal necessário, que o ser é pobre porque é vagabundo e merece sua miséria, mas que existem alguns benfeitores (o governo, os políticos, clubes de serviço, entidades filantrópicas) e que, apesar de pobre, a pessoa deve orgulhar-se de sua pobreza, primeiro porque há muita gente interessando-se por ele (só não dizem que nunca vão resolver nada) e que é uma honra servir ao senhorio. É a prática da odiosa “moral do escravo” preconizada por Nietzsche.

A pobreza no Brasil tem raízes profundas, históricas. Começa na invasão, toma corpo na colonização e na escravidão, reforça-se no coronelismo, nas oligarquias políticas, indo tudo desembocar nas revoluções promovidas pelas elites.

Entretanto, enquanto se contempla o esfacelamento de nossa política, resultante de tantos fatores despidos de ética e moral, é indispensável lembrar que trazemos essas marcas desde nossa gênese histórica, e que tudo começou com uma invasão armada.

O CRESCIMENTO DA POBREZA

Dentro do contexto latino-americano, Brasil é um país de contrastes. Aqui convivem, no mesmo bairro, e às vezes na mesma rua, descaradamente, um glorioso primeiro mundo opondo-se a um obscuro subdesenvolvimento.

O primeiro mundo é em geral representado por um salário estável, acima de US$ 4,000, uma boa e confortável casa, algumas com piscina, dois ou mais carros, uma ponderável poupança bancária, seguridade social, assistência médica suplementar, nível escolar universitário, mesa farta e armários abarrotados de gêneros alimentícios e roupas da moda. Enfim, um excelente padrão de vida.

O terceiro mundo aparece através de pessoas subempregadas ou desempregadas, nível escolar baixo ou nulo, nenhuma assistência social ou de seguridade, a não ser a oficial, falta de moradia, saúde deficitária, fome e miséria quase absoluta. Todos esses fatores geram a insegurança e o sobressalto social.

A pobreza no Brasil iniciou a partir das culturas primariamente oprimidas: os índios e os negros escravos. Sobre a escravidão vou falar no tópico seguinte. Posteriormente, essa massa sofreu o acréscimo de seus descendentes, bugres, caboclos, mamelucos, mulatos e cafuzos. Essas culturas nunca tiveram, no Brasil voz nem oportunidade de escrever sua própria história.

Afogado por sistemas sociais injustos e excludentes, poderíamos dizer que no decorrer de praticamente cinco séculos, o número de pobres aumentou, surgiram os indigentes e miseráveis, e a situação social involuiu, chegando a este final de século plena de inquietação e surda revolta. O círculo vicioso da pobreza converge e abrange os filhos dos pobres, que vão formar novas e ameaçadoras gerações de pobres, alijadas do mercado de trabalho em função, muitas vezes, da cor, da situação econômica, da falta de estudo, da qualificação profissional e – por causa desse conflito – da instabilidade emocional e comportamental. Em meu livro, Terra, dom de Deus, eu abordo, detalhadamente, três barreiras que considero o maior dificultador para libertação e crescimento dos pobres, no Brasil: a falta de estudo, a falta de qualificação profissional e a falta de estabilidade emocional.

Hoje existe no Brasil como que uma guerrilha urbana. Seu cunho não é político nem ideológico. Trata-se – embora totalmente carente de ética – de uma simples tentativa de sobrevivência. Essa batalha é travada todos os dias entre os que não têm nada (e nesse aspecto a pior carência, superior à fome, é a ausência de oportunidades e de perspectivas de vida) e os que possuem bens, vida confortável, segurança, estabilidade.

Nesse particular, os roubos, assaltos, seqüestros, contrabando, prostituição, extorsão, tráfico de drogas e armas tornam-se o meio dos despossuídos buscar para si alguma coisa, que eles julgam excessiva e supérflua, que se encontram nas mãos de uma minoria privilegiada. Embora condenada pelo moralismo formal da sociedade, é a maneira dos excluídos de fazer justiça. O meio urbano é o principal indicador de uma sociedade. Ora, se o modelo urbano no Brasil é assim, e apresenta esses problemas, o que se poderia dizer em relação ao meio rural? Em nosso país, o modelo rural, excessivamente concentrador, tem provocado a expulsão e a marginalização de muitos agricultores.

O sistema rural brasileiro, seja pecuária ou agricultura, está a requerer uma revisão urgente quanto a formas de atuar, alternativas, perspectivas e destinos. Somos um continente rico em recursos agrários, habitado por multidões anêmicas. E o pior de tudo é que o caminhar atual não está indo em busca de soluções reais: as diferenças crescem. Para caracterizar essa situação, é bom ter em mente a realidade brasileira:

a) agricultores sem terra e extensas áreas despovoadas ou

sub-povoadas;

b) país rico e a maioria do povo pobre ou indigente;

c) país produtor e exportador de alimentos onde há fome.

Os grandes países da América Latina, e em especial o Brasil, vivem, anualmente a euforia das farsas chamadas “supersafras”, medidas em toneladas e em dólares. São farsas porque não retornam para alimentar o povo, sendo exportadas em troca de divisas. Só 18% das safras são convertidos em alimento para o povo.

O dinheiro, com o qual o governo paga sua extensa folha (Legislativo, Executivo e Judiciário) e emprega em seus projetos políticos de cunho eleitoreiro, vem do desvio da venda de alimentos ao exterior, que devia alimentar o povo, e serve apenas para engordar o gado do gringo, lá fora. Isso quando não é desviado, como no episódio dos “anões do orçamento” em 1994, em cujo epílogo ninguém foi preso ou obrigado a ressarcir o que roubou.

Em 1992, no auge das campanhas moralizantes do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em seus comitês contra fome, as estatísticas confiáveis identificavam 31 milhões de indigentes no Brasil. Hoje, passada a euforia, como tudo no país, não é de admirar que aquele número tenha se aproximado dos 40 milhões. As lavouras de alimento dão lugar ao plantio de oleaginosas exportáveis. Exporta-se matéria prima e importa-se o manufaturado da mesma matéria que se exportou.

Na década de 70, o Brasil possuía auto-suficiência em cereais. Essa taxa baixou para 91% em 1980 e caiu para 77% em 1990. Acredita-se que o déficit de hoje seja maior ainda. É preciso inovar... A crise alimentar, a fome, começa, no Brasil, a partir do descaso com a produção de alimentos, e em especial à falta de apoio aos pequenos agricultores.

A pobreza tem, no Brasil, vários fatos geradores. Primeiro a herança histórica. O brasileiro, de origem (o índio e o mestiço) foram empobrecidos pelo colonialismo português. Depois os escravos vieram aumentar essa legião de miseráveis. A pobreza começa pelo campo. Sem terras e sem oportunidades, o homem rural migra para as grandes cidades, e vai disputar mercado com outros, pobres. Às vezes, desesperado, rouba, assalta e mata, para sobreviver. Além do aumento da pobreza, aparece outro fato: a violência. Para a expulsão do homem do campo, concorrem alguns fatores:

a) mecanização excessiva de nossas lavouras, diminuindo a produtividade e aumentando os custos de produção;

b) o mercado restrito com cooperativas ou associações

específicas;

c) a marginalização, sob todos os aspectos, do homem rural;

d) o achatamento sócio-econômico (juros, preço

impraticáveis, custos altíssimos, etc.);

e) muita terra em mãos de poucos;

f) excesso de “planos econômicos”, gerando instabilidade e

pouca atitude eficaz;

A crise rural é tão grande, proporcional à incompetência do governo e ministros da área, que conseguiu unir agricultores sem-terra e com-terra, no início de 1996. O que parecia impossível aconteceu. Tendo como agente a fome, a miséria, o descaso oficial, os elevados juros dos bancos oficiais para custeio de plantio ou colheita, a incompetência na equação de problemas rurais, os homens do campo, seja aquele que busca um pedaço de terra, ou o que a tem mas não pode mais mantê-la, se uniram em protestos,

Desesperados, muitos, diante da crise sem precedentes, preferiram suicidar-se diante da desonra do protesto, do confisco ou da penhora.

O modelo social elitista, de corte neoliberal veio agravar o problema dos pobres e dos pequenos. Em conseqüência da implantação dessas novas filosofias, aumentou a riqueza dos ricos, em cima do empobrecimento dos demais. Quem era remediado ou classe média, ficou pobre. Quem era pobre, foi excluído do mercado, tornando-se miserável. Um sistema injusto vem criando – como afirmou João Paulo II em 1980, a distorção de “ricos, cada vez mais ricos, à custa de pobres, cada vez mais pobres”.

A DÍVIDA DA ESCRAVIDÃO

A invasão européia é a gênese da rapina e do desrespeito ao direito natural das populações ameríndias, mais fracas e por isso mesmo vulneráveis. Quando se fala em escravidão e violação ao direito das criaturas, não se está buscando dados apenas da escravidão negra. Também os índios sofreram, no começo da história, um violento processo de escravidão.

Durante muito tempo foi ponto comum dos historiadores a afirmação de que foi difícil a domesticação dos índios, pois esses eram vagabundos, não queriam trabalhar, etc. Os negros, segundo as mesmas fontes, eram mais dóceis e fortes para o trabalho. No entanto, é bom que se observe que o negro, mesmo na África, vivia uma existência sedentária, ligada à agricultura. Com o índio foi diferente. Não que ele fosse vagabundo, como acusou algum segmento dos historiadores, mas porque a liberdade de suas condições, mais ou menos nômades, tornavam impossível qualquer sujeição.

A partir do século XVI, começaram a singrar as águas do Atlântico, os navios negreiros, de bandeira inglesa, que traziam negros das nações nagô e bantu. Muitos anos antes dos descobrimentos, ainda no século XV, já havia negros escravos em Portugal, Espanha, Açores, Madeira e Cabo Verde. Calcula-se que em 1500, cerca de 10% da população de Lisboa era constituída de negros vindos da África.

Este proêmio visa mostrar as características escravagistas de nossos “descobridores”. Na verdade, a economia ibérica vivia de dois segmentos: o proprietário que explorava, e o escravo que era explorado. A figura posterior do imigrante, como conhecemos, o italiano, o alemão, o japonês e o polaco, só para citar esses quatro, onde o proprietário, com sua família, fazia todo o trabalho braçal, era uma prática desconhecida para os conquistadores espanhóis e portugueses.

No Brasil colonial, alguns brasileiros, seguindo o exemplo dos portugueses, tornaram-se traficantes de escravos. Houve uma época em que o tráfico rendia um terço das importações vindas da metrópole

Alguns cronistas afirmam que 40% dos negros capturados na África morreram na viagem, de fome, sede, maus tratos e também nos naufrágios, decorrentes do excesso de carga. O Brasil recebeu escravos africanos no período compreendido entre fins do século XVI e meados do século XIX. Com a proibição do tráfico de escravos, a partir de 1808 o transporte tornou-se clandestino. Muitas vezes, contam os livros, ao avistar as canhoneiras inglesas e americanas, os negreiros, para não serem presos e terem o navio apresado, jogavam os negros ao mar, acorrentados, com pesos de ferro atados aos pés.

Curiosamente, o mesmo colonialismo cruel das metrópoles, que encheu as senzalas, inspirado no iluminismo, tratou de criar, no início do século XIX, diante da iminência da revolução industrial, que exigia a modernização da mão-de-obra, uma consciência mundial contra a escravatura, forçando os governos a proibirem o tráfico e a abolirem tão indignas práticas.

Num gesto igualmente hipócrita, Portugal e Espanha determinaram, a partir de fins do século XVII, que em cada navio negreiro fosse lotado um capelão. A esse respeito, há uma contundente homilia de Dom Pedro Casaldáliga:

Em nome de um deus supostamente branco e colonizador,

que as nações têm adorado como se fosse o Deus, Pai de

Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de negros vem

sendo submetidos, durante séculos, à escravidão, a

desespero e à morte, no Brasil, na América, na África-mãe,

no mundo. Deportados como “peças” da ancestral Aruanda,

encheram de mão-de-obra barata os canaviais e as minas, e

encheram também as senzalas de indivíduos desaculturados,

clandestinos, inviáveis. E encheram ainda de subgente – para

os brancos senhores e as brancas senhoras – as cozinhas, os

cais, os bordéis, as favelas, as baixadas, os xadrezes. (In:

Missa dos Quilombos, 1980).

A abolição da escravatura em 1888, pela princesa Isabel, não foi, como ingenuamente cantávamos no curso primário, aos oito anos, “... um gesto de seu grande coração...”, mas uma jogada política, no sentido de trazer a opinião pública de volta à monarquia, pois esta já se manifestava abertamente seduzida pelos ideais republicanos.

O problema dos negros não foi resolvido com a abolição. Em muitos casos até piorou. Muitos passaram de escravos a mendigos. A quase totalidade dos negros era analfabeta. Libertados, da noite para o dia, foram mandados embora, sem casa, sem emprego e sem indenização. E o pior: sem condições de competir com os colonos, imigrantes europeus, que chegavam ao Brasil.

Como só o que sabiam fazer era trabalhar na terra e nos engenhos, empregaram-se mas mesmas fazendas onde tinham sido escravos, em troca de comida. Acabou-se a escravatura de direito – a porta da senzala foi aberta – mas perdurou a de fato. “A lei que promulgou a abolição do cativeiro, consagrou uma espoliação dos escravos pelos senhores”. Nessa nova contingência, alguns ganhavam menos e tinham menos benefícios do que na situação anterior.

Entendo que é impossível entender a crise ética que assola nosso país, sem refletir sobre estes aspectos que acabamos de estudar. Grande parte da violência e da rapina que grassa no Brasil, tem sua gênese no modelo de colonização, seus vícios e crimes, na marginalização do índio e na escravidão do negro. A pobreza crônica de um ponderável segmento de nossa população tem origens históricas, como acabamos de ver. A favelização dos pobres, a escravidão dos negros e a marginalização dos índios são dívidas que ainda não foram quitadas.

Texto publicado em 1995 na REB (Revista Eclesiástica Brasileira). Trata-se de um excerto do livro “A crise da ética. O neoliberalismo como causa da exclusão social no Brasi". Ed. Vozes, 1990, 3ª. edição. O autor é Escritor, Biblista, Filósofo e Doutor em Teologia Moral.