SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO; APOLOGIA DA MORTE

Ontem, aqui em Sampa, estava uma noite agradabilíssima. Um calorzinho básico sem ser extremado, o cheiro das plantas, das damas da noite e das pizzas pelas ruas no meu delicioso bairro eminentemente residencial. Era quase um orgasmo passear por aqui ontem à noite.

Tive que buscar minha filha num lugar bem próximo, pois ela estava na casa de uma amiguinha a brincar. Tem somente 11 anos a infante, uma criança adorável, de uma inteligência notável, uma articulação com as palavras e um léxico que poucos adultos possuem, em suma, desculpem, minha filha.

Estávamos a voltar da casa da amiguinha em meio a todo esse cenário quase bucólico, mãos dadas, os aromas deliciosos do meu, repito, delicioso bairro, quando lá longe vi um monte de luzinhas.

O que serão estas luzinhas? As luzinhas passavam e pareciam na verdade com formiguinhas.

- Pai, o que é aquilo?

- Acho que é uma procissão, filha.

Procissão? Fiquei estarrecido! Uma procissão bem em meio à selva de pedra ateia paulistana, como pode? Acho que a última procissão que vi foi na década de 1970! Não cria, mesmo vendo, naquele monte de gente carregando velas nas mãos e naquela cantoria de melodia carregada.

- Quero ver, pai!

Apertamos o passo e fomos ver de perto a procissão. E não é que era mesmo uma procissão! Com tudo que uma procissão tem direito! Padre, santos sendo carregados, pessoas com velas nas mãos, a cantoria de melodia desesperadora, densa densidade demográfica de gente idosa, havia um perfume diferente no ar, acho que brotava das velas, talvez aromáticas...

Adentramos a procissão. Estávamos curiosos para ver de perto aquele espetáculo já quase falecido em meio à cristandade ateia dos nossos tempos.

Muito perto chegamos do padre e do carro principal.

Junto ao sacerdote, caminhavam três mulheres vestidas da cabeça aos pés com uma vestimenta que cobria todo o corpo, inclusive a face também não era mostrada, como se fosse a versão cristã da burca islâmica. Duas estavam com esse traje completamente negro, e outra com a indumentária totalmente roxa, cores que lembram morbidez e coisas fúnebres.

Nesse momento minha filha se agarrou com mais força em meu corpo. Disse-me que estava com medo. E, realmente, para quem não está acostumado com as bizarrices da cristandade, aquilo era de arrepiar.

Tamanha a sensação de morte e fim dos tempos que toda aquela reunião de coisas representava.

Nisso, lembrei-me dos meus tempos de criança. Naqueles tempos ao mesmo tempo mágicos e trágicos da década de 1970. Tinha as mesmas impressões que a minha filha. Toda aquela reunião de gente para celebrar a morte.

Ao final da procissão, havia uma imagem de cristo deitado, morto, em cima de um caminhão para coroar toda a apologia mortal daquele evento esdrúxulo e também já quase finado que é uma procissão.

Tudo aquilo, a reunião de coisas, as mulheres da burca cristã, os santos, o cristo morto, a melodia demasiadamente dramática, as velas, aquele monte de gente velha, tudo isso só me trouxe um pensamento na cabeça: morte!

Morte! O cenário é praticamente o mesmo de um velório. Tanto, que para quem não tem o costume de ver esse tipo de coisa, não é de se admirar que fique com medo.

Fomos embora e deixamos a cristandade com seu cristo morto adentrar a igreja, o rebanho a buscar a ajuda do seu pastor mor. Mesmo assim fiquei feliz, pois é mais um conhecimento de mundo que minha querida filha adquire e presencia.

Sei que de forma alguma ela vai aderir às fileiras deste rebanho da morbidez. Ela não é afeita, já mostrou bem a mim, seu genitor, a esse tipo de bizarrice.

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 23/04/2011
Reeditado em 28/04/2011
Código do texto: T2925830
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