Carta ao passado

Era o último dia de carnaval, na rua Cuba esquina com Chile numa cidade do interior do Paraná, uma casinha qualquer de aspecto simples, mal pintada cheia de gente. Lá está Cirinha com um barrigão sem igual, vestido de chita, um chinelo, à beira de um fogão de lenha, mexendo a polenta com uma colher de pau... e a panela é de ferro... ela com uma dorzinha aqui, outra ali, cantarola:

Mexe polenta, mexe polenta... polenta mexe, polenta mexe.

Cuidado Oziris! Diz vovó Luiza nervosa.

Cirinha é o apelido carinhoso de Oziris, lhe foi dado pelo tio Alfredo.

Mexe polenta, mexe polenta... polenta com galinha, continua cantarolando Cirinha.

Vovô Maéco também está lá, preocupado com o que... Olha lá o Antonio, vai ser pai, está muito feliz. No radinho, a música carnavalesca continua tocando... é um rádio velho à luz. Um quadro pendurado na sala, é um casal feliz – Antonio com um bigodinho bem curtinho, Oziris com um lindo vestido branco – é tudo tão simples e na simplicidade fica o envolvente carinho e a cantiga continua sem parar.

Mexe polenta, mexe polenta... polenta com galinha... xi! Vou ter que fazer xixi! Diz Cirinha.

Xixi, de novo Cirinha... tá na hora grita Maéco.

O nervosismo é geral, vai alguém com ela na privada – É privativo ainda, a privada do pobre... a casinha é de madeira quase em bruto... Vai lá Luiza, vai lá Antonio, vai lá Maeco, vai todo mundo. Mas lá não cabe o mundo.

Eu sou mãe, eu vou, diz Luiza ainda nervosa.

Na verdade ninguém queria ir, já pensou se nasce ali! A criança vai nascer de uma hora para outra. Mas ainda não nasceu e voltam a cozinha tranqüilas.

Que vontade de fazer xixi.

Vou buscar a parteira, vou sim, preocupa-se novamente o Antonio.

Não precisa, diz Cirinha.

Precisa sim, diz vovó Luiza.

Maéco quase grita:

Vai logo homem!

A correria é louca, o Antonio sai numa disparada só. O local é longe e precisa correr ainda mais.

Mexe polenta, polenta mexe, polenta com galinha, esperando a criancinha.

Não se sabe se é menino ou menina, o que se sabe é que ele nascerá num dia de carnaval na rua Cuba esquina com Chile. É perto de meio-dia, lá fora o pessoal deve estar derretendo de tanto pular, e no ventre da mãe aflita pulando o neném só quer sair.

Fazer xixi de novo Oziris, fala Maéco;

Vamos levar (diz ele olhando para Luiza) para cama já.

É a dor que vem sem parar... Cirinha ta com uma cara de quem comeu e não gostou.

Não agüento mais, diz ela, com um olhar de sofrimento.

Deita filha, diz Luiza aflita, tenha calma que a parteira já vem.

Maéco está tão nervoso, será que ele vai chorar... Não, homem não chora

Porque homem não chora?

Calma Maéco! Ele não se controla e diz quase que autoritário para Luiza:

Vai buscar os vizinhos depressa, a criança vai nascer.

Como que assombrada, sai correndo, chama um vizinho, chama outro e mais outro.

Venham depressa, a criança vai nascer.

É uma correria sem igual. A polenta até já queimou, e ninguém viu, nem mesmo perceberam que o cheiro tomou conta da cozinha.

Cirinha está na cama com uma dorzinha tão ruim. Chega os reforços, veio vizinhos de todo lado. Luiza grita:

Maéco, tira a polenta do fogo.

Corre lá o Maéquinho, com seu corpo franzino. Ele é gozado, tão desajeitado, tão atencioso e querido.

É Luiza... a polenta já queimou!

Passa a polenta para a pia e volta correndo...

Nestas alturas a polenta não mexe mais...

As músicas do rádio velho nem são escutadas, somente o tique-taque do relógio continua entre os gemidos, os gritos e a conversa animada:

- Coitadinha, diz a vizinha, ela está sofrendo tanto.

- Eu também já passei por isto, fala outra.

- Eu também. Grita Cirinha. Já é o segundo que tenho.

- Calma filha, diz Luiza cansada de se preocupar.

Tique-taque, tique-taque, o relógio não quer se calar...para ele não importa se há dor, se há sofrimento, o que realmente importa é que ele deve trabalhar.

Tique-taque, tique-taque...os ponteiros já estão quase apontando para o telhado surrado da casa.

É perto de meio-dia. Um grito mais forte ouve-se no quarto...

Nasceu! Diz Maéco (quase ninguém notou algumas lágrimas em seus olhos).

- Nasceu filha, diz Luíza com medo de olhar (olha... não olha, olha... não olha)

- Nasceu diz uma vizinha!

- É piá! Diz outra olhando para o pipi da criança.

É sangue, é água da bolsa misturando com o suor de Cirinha, sujando tudo.

O piá ta tão sujo e feio. Criança quando nasce é feia mesmo, parece um rato... um rato lambido – um cara de polenta. Com uma coragem sem igual, Luiza olha para a criança:

- Como é feio, diz ela sorrindo.

- Ele é bonito, diz a vizinha tentando consolar Cirinha.

Maéco está sentado pensando, é tanta mulher falando... Fala daqui e dali. Agora é uma briga só.

- Tem que cortar o umbigo, diz uma.

- Não é umbigo, é imbigo, diz outra.

- Tem que cortar logo, diz outra, senão o piá morre.

-Se cortar o umbigo é que ele morre... fala a mais entendida, tem que cortar o cordão umbilical.

- Olha só... ele está roxinho.

- Corta duma vez este negócio - fala Maéco, não se contendo.

- Um palmo, diz uma.

- Quatro dedos, diz outra.

- Dois palmos, outra exagera.

Mas a criança é tão feia, porque será que estão tão preocupados? Corre daqui, corre dali, pega água, dá água.

- Depressa... diz Luiza.

Parece que ninguém sabe fazer um parto. O desespero tomou conta de todos. Mas chegou Antonio com a parteira, seu nome é Catarina.

- Corre Catarina - dizem todos numa palavra só.

Antonio preocupa-se, tinha saído e quando voltara encontrava sua Cirinha naquela situação, rodeada de vizinhas olhando e sem fazer nada.

Mulheres... atrapalhadas.

Água quente... fogão à lenha tem sempre água quente.

Corre uma, corre duas, corre três... água quente vem.

Corta o cordão umbilical... um grito:

Nhééééé...

Outro grito:

Uhááá...

As vizinhas espantadas e felizes saem conversando felizes:

- Eu falei que era um palmo.

- Mas ela cortou a dois palmos.

- Vocês nem olharam, foi a quatro dedos.

Mas elas estão felizes. Todo mundo está feliz. Antonio não sabe esconder seu sorriso. Luiza chora copiosamente. Catarina livra a criança da sujeira, preparando um rápido e gostoso banho. Maéco vai comer um pouco de polenta queimada. Cirinha dorme cansada.

Quanta folia...

Oh, quanta alegria...

mais de mil palhaços no salão... a música toca baixinho.

Até o tique-taque do relógio bate devagar, será que ele também cansou. Antonio quer falar, mas se cala, Luiza diz:

Vou fazer um cafezinho para vocês.

Catarina já foi embora, deve ter outro parto a fazer. Ta todo mundo cansado.

Nhééé... Uhááá... Uháaáá... Uhááá...

Antonio, Maéco, Luiza tomam o cafezinho cansados. E dia dezoito de fevereiro de 1955... Cirinha dorme.

Nhééé... Uhááá...

(Penso sorrindo! Até parece que eles é que sofreram).

Esta é uma pequena homenagem aos meus pais Toinho e Cirinha.